Observando cuidadosamente. A análise sociocultural e a comunicação do evangelho.

André Souza
5/9/2019
Missões e Evangelismo

“Atenienses! Vejo que em todos os aspectos vocês são muito religiosos, pois, andando pela cidade, observei cuidadosamente seus objetos de culto e encontrei até um altar com esta inscrição: AO DEUS DESCONHECIDO. Ora, o que vocês adoram, apesar de não conhecerem, eu lhes anuncio” (At. 17.22-23).

Uma das características do Apóstolo Paulo era o seu esforço contínuo em comunicar fiel e inteligivelmente o Evangelho conforme seu público alvo. Foi assim por todos os lugares em que passou. Se por um lado anunciava e confiava na graça de Deus, por outro nunca fugia do esforço de observar cuidadosamente a cultura. A partir da análise sociocultural propunha a narrativa bíblica que usaria, bem como as categorias teológicas fundamentais, para um público específico ao qual dirigia suas palavras. Por fim, aplicava as respostas que impactavam aqueles aos quais a graça de Deus alcançava.

Penso que observar cuidadosamente é uma das qualidades que todo líder cristão deveria demonstrar – o esforço para anunciar o Evangelho de modo fiel e inteligível, oferecendo respostas de modo satisfatório à cultura e tensões que nos cercam.

Vejo porém, com certa preocupação, análises generalizantes sobre a comunicação do Evangelho no contexto urbano, mais especificamente, no contexto das cidades brasileiras. Influenciados ultimamente pelos escritos de Baumann, especialmente sobre o mundo líquido, tendemos a pensar que o ocidente se configura num grande bloco pós-moderno, pluralista, relativista, progressista, individualista, não cristão ou pós cristão entre outras características relevantes à pós modernidade. É evidente que em um olhar geral percebemos claramente certas tendências globais de modo que não podemos negar, em primeiro lugar, as características gerais do mundo pós-moderno em que estamos inseridos e, em segundo lugar, os processos de urbanização como um fenômeno mundial, em que até 2050, sete em cada dez pessoas do planeta habitarão em cidades (LIDÓRIO, 2018, P. 143). Entretanto, estas tendências globais não devem nublar o entendimento particular de cada cidade ou mesmo diferentes grupos e culturas em uma mesma cidade.

Um dos modos de sermos mais cuidadosos, assertivos e intencionais não seria apenas considerarmos a pós modernidade como uma cultura generalizante a todas as cidades. Temos observado através de pesquisas e aplicação de métodos que cidades são diferentes umas das outras mesmo que sejam vizinhas. Não são diferentes somente com relação a vizinhança, mas dependendo da cidade, essas diferenças se manifestarão internamente com grupos sociais distintos em seu modo de pensar, sentir e agir. Nos referimos aqui as cidades de pequeno, médio e grande porte em ambientes rurais ou urbanos. A todas estas estamos chamando, para a finalidade deste texto, de cidades.

Num texto anterior (estranhando a familiar - https://www.martureo.com.br/a-antropologia-e-a-missao-urbana-estranhar-o-que-e-familiar-e-imprescindivel/ apresentei que um dos primeiros passos para o conhecimento da própria cultura seria estranhar aquilo que nos é familiar e alertei conforme Velho (2013, p. 72) que, “O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido”.

Feito esta lembrança, digo que somente o estranhamento não é suficiente para o conhecimento da cultura sem que tenhamos uma clara metodologia que coopere com uma observação cuidadosa e que gere ações mais assertivas para a comunicação do Evangelho, isto é, colocar a contextualização da mensagem em ação.

O método fundamental e clássico da Antropologia para a análise cultural é a etnografia que conforme o antropólogo Geertz, (1978, p. 15) se caracteriza por uma descrição densa do fenômeno cultural escolhido pelo pesquisador:

"[...] segundo a opinião dos livros-textos, praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante. Mas não são estas coisas, as técnicas e os processos determinados, que definem o empreendimento. O que o define é um tipo de esforço intelectual que ele representa: um risco elaborado para uma descrição densa."

Embora a etnografia seja de fundamental importância para o trabalho de conhecimento da cultura, acho pouco provável para a proposta que temos aqui, isto é, comunicar contextualmente, intencionalmente e assertivamente que a etnografia pudesse ser usada isoladamente para nos dar as respostas que precisamos. Sem falar que iria requerer do leitor um conhecimento mais profundo do que venha a ser etnografia.

Assim, para fins práticos propomos o método URBANUS (LIDÓRIO, 2018, p. 141 – 170) que poderá ser facilmente aplicado, mesmo que o leitor não esteja amplamente familiarizado com as teorias e métodos antropológicos.

O método URBANUS utiliza conforme Lidório (2018, p. 147-148):

"elementos quantitativos e qualitativos pinçados dos modelos etnográficos e etnológicos, associados aos modelos de estudo do comportamento humano, organização social, símbolos urbanos e mapeamento geopolítico. Estes elementos serão arranjados e analisados a partir de uma perspectiva missiológica direcionadora para ações de comunicação, interação, evangelização e plantio de igrejas em ambientes urbanos. O método Urbanus utiliza pressupostos socioconstrutivistas e culturalistas, mesclados a elementos fenomenológicos, sociopolíticos e categorizadores, tendo como alvo avaliar sociedades urbanas, sejam em um contexto mono ou multicultural, com previsão de múltiplos segmentos socioeconômicos e variações de valores, comportamento e crenças, entre outras."

O método nos ajuda e nos guia no aprofundamento de uma observação cuidadosa gerando as informações necessária para as ações missionárias, especialmente na plantação de novas igrejas. O URBANUS propõe a investigação em quatro áreas fundamentais para o conhecimento da cidade ou o recorte ao qual o pesquisador se propõe. São elas: a história, a geografia, a população e a cultura. Cada uma dessas áreas empreende um trabalho contínuo que se conecta e organiza a pesquisa dando significado e categorizando cada ambiente pesquisado.

Por exemplo, um marco de fundação de ensino, uma universidade, tenderá a ter uma orientação sócio-filosófica distinta de uma marco de fundação religioso, uma igreja, por exemplo. Hipoteticamente uma cidade fundada por uma universidade tenderá a privilegiar uma cultura mais urbana, progressista, individualista, materialista, pluralista, relativista e assim por diante. Em outras palavras uma cultura pós-moderna onde seus valores não são absolutos tenderão a ser avessos a assuntos religiosos, embora eu reconheça no Brasil um paradoxo, pois nunca estivemos tão avessos a assuntos ligados a religião, mas ao mesmo tempo tão interessados em assuntos referentes a espiritualidade.

Por outro lado, um marco de fundação religioso, como uma igreja católica por exemplo, tenderá a ter uma orientação sócio filosófica em sua cultura mais tradicional, coletivista, mística, cristã, moderna em que os valores, como casamento religioso, por exemplo, ainda são preservados.

Neste ponto podemos voltar a uma das questões iniciais. No primeiro exemplo de um marco de fundação universitário provavelmente o convite para ir ao culto de sua igreja terá uma grande probabilidade de não ser compreendido, ou, se compreendido, será quase com certeza respondido negativamente. Porém, no segundo exemplo, uma cidade fundada sob forte influência religiosa católica não terá quase nenhuma dificuldade de compreender ou mesmo de aceitar o convite.

Mas ainda temos uma outra questão. Cidades podem ser tão diversas internamente que é possível e muito comum encontrarmos cidades em plena transição de perfil, de tradicionais para progressistas, de modernas para pós modernas, de cristãs para pós cristãs, de místicas para materialistas e assim por diante. É muito comum hoje em dia que populações mais jovens tenham um perfil mais pós-moderno enquanto seus pais e avós ainda são modernos. Para tudo isso a aplicação do método URBANUS nos guiará em uma melhor compreensão da cultura e do contexto em que estamos inseridos e do qual fomos chamados a sermos luz (Mt. 5.14).

O método tem a habilidade não só de esclarecer a cultura estudada, mas a partir da apreensão dessas categorias e da compreensão específica da cidade a qual estamos investigando podemos definir de modo mais assertivo quais as abordagens teológicas mais adequadas para a apresentação inicial do evangelho. Estamos entrando aqui em um campo mais missiológico que seria a aplicação do método para fins de evangelização, discipulado e plantação de igrejas.

Com base nas informações coletadas e com o devido perfil cultural da cidade podemos pensar agora no tipo de linguagem e qual a melhor abordagem podemos lançar para que o Evangelho seja comunicado de modo fiel às Escrituras e relevante à cultura e suas questões.

Tomemos mais uma vez os exemplos acima. Suponhamos então que uma cidade ou bairro universitário seja pós-moderno, ou seja, progressista, individualista, materialista, pluralista, relativista e outras categorias relevantes ao pós-modernismo. Uma abordagem do Evangelho que inicie pela criação com certeza não atrairá a atenção, visto que a teologia da criação nesses ambientes tende a ser ridicularizada. Porém, uma abordagem inicial a partir do sofrimento humano e da resposta de Deus para o mesmo pode encontrar uma porta aberta. Um convite para o culto, do mesmo modo será descontextualizado da realidade, porém um convite para um café em uma cafeteria da cidade será mais facilmente aceito.

A pergunta que pode surgir neste momento é: não vamos falar sobre o Evangelho todo? Não vamos falar sobre a criação? Sim, pois todo o evangelho deve ser proclamado e ensinado. Contudo, Iniciaremos com os temas que estão mais próximos e que desperta maior interesse do ouvinte à semelhança do apóstolo Paulo em Atenas: uma comunicação que seja fiel ao Evangelho em todas as suas dimensões e que seja transmitida a partir de uma linguagem e abordagem familiar e atraente. Afinal, não foi isto que o apóstolo Paulo fez em Atenas, Listra, Galácia, Macedônia e tantos outros lugares? Timóteo Carriker (2018, p. 17) comenta que:

"a sequência cronológica mais apropriada da avaliação missional é: primeiro, a análise social; segundo a reflexão bíblica; terceiro a teologia. Só que boa parte da conversa missional atual inverte essa ordem, apelando predominantemente à teologia, com pouca ou nenhuma reflexão sociológica. A ordem é essencial. A última análise, a teológica, deverá ter a palavra final, mas seu papel principal é responder às questões antes levantadas pela análise social e filtradas por sua interação com as Escrituras."

Carriker continua (2018, p. 23) analisando o procedimento do apóstolo Paulo na carta aos Romanos do seguinte modo: 1. Ele fazia uma análise sociológica; 2. Consideração das narrativas bíblicas, revisão das categorias teológicas; 3. Aplicação na vida e missão da igreja local e na missão global da igreja.

De certo modo o serviço que tento prestar aqui aos meus colegas pastores, missionários e cristãos em geral é sobre a importância da aplicação de princípios e métodos antropológicos (que nos ajudem na observação cuidadosa) para o desenvolvimento de estratégias missiológicas e aplicação assertiva e intencional à realidade de nossa própria cultura. Trabalho este que, anteriormente, era quase que exclusivo do trabalho transcultural.

Num próximo artigo me deterei a um estudo de caso feito na cidade de Joinville – Santa Catarina onde mostrarei o resultado da aplicação, análise e as implicações para a evangelização usando o método URBANUS. Embora, Lidório (2018, p. 163 – 170) já tenha feito um estudo sobre um recorte da cidade de Manaus creio que, mesmo assim, seja relevante mesmo que para fim de comparação.

Por fim encerro com a citação que melhor traduz o que penso sobre tudo que escrevi até aqui:

"O impacto do reino de Deus não é mera questão de métodos e estratégias.[...] mas acima de tudo, é questão de conteúdo. A nossa mensagem é a graça de Deus revelada na crucificação e ressurreição de Jesus e vivida diariamente pelo Espírito Santo. Somente a graça pode nutrir o amor do povo de Deus pelo seu próximo, o que, por sua vez, abre caminho para o anúncio efetivo do Evangelho e transformação que ele promove na vida daqueles que creem." (CARRIKER, 2018, p. 36)

BIBLIOGRAFIA

CARRIKER, T. O que é igreja missional: Modelo e vocação da igreja no novo testamento: Ultimato, 2018

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

LIDÓRIO, R. Plantando igrejas: editora Cultura Cristã, 2018.

VELHO, G. Um antropólogo na cidade: ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013