Deus é o Criador do Mal? 

Carlos Vailatti
10/6/2021
Apologética

Deus é o Criador do Mal? 

Breves Apontamentos Sobre o Significado de Isaías 45:7

por Carlos Augusto Vailatti(1)

Será que Isaías 45:7 ensina que Deus é o criador do mal? Segundo o ateu Adam Lee, sim. Em seu blog, DayLight Atheism (Ateísmo à Luz do Dia), Lee refere-se à passagem em destaque como “uma das mais chocantes da Bíblia” e, em seguida, conclui que “o mal existe porque Deus o criou”.(2) Além de Lee, o teólogo Vincent Cheung também se vale desse mesmo versículo para afirmar que Deus “projeta” e “causa” o mal.(3) Ora, mas será que tais percepções refletem a verdade? Antes de responder a essa pergunta, vejamos primeiramente o que Isaías 45:7 diz (incluindo Is 45:6b):

Eu sou o SENHOR, e não há outro.

O que forma a luz e cria a escuridão,

o que faz a paz e cria o mal; 

Eu sou o SENHOR que faz todas estas coisas.(4)

De acordo com os estudiosos, Isaías 45:7 faz parte do chamado Oráculo de Ciro, que encontra-se em Isaías 44:24-45:7. (5) Nesse oráculo, o Senhor promete levantar Ciro, o futuro rei da Pérsia, como um conquistador de diversas nações (cf. Is 45:1-4) e também como o libertador de Judá do exílio babilônico (cf. Is 44:26-28). No que se refere a este último caso, sabe-se que Ciro conquistou a Babilônia em 539 a.C. e que, ao fazê-lo, emitiu um decreto que permitiu aos judeus que retornassem à sua terra em 538 a.C. Este, portanto, é o contexto a partir do qual o versículo em consideração deve ser compreendido.

Entretanto, em razão da menção feita a Ciro, o persa, nesse oráculo, alguns comentaristas têm sugerido que a referência feita à “luz” e à “escuridão” em Isaías 45:7 deve ser entendida como uma alusão ao dualismo persa, segundo o qual havia um conflito perpétuo entre o deus da luz, Ahura Mazda, e o deus das trevas, Ahrimã.(6) Sendo este o caso, as declarações de Isaías 45:6b (“Eu sou o SENHOR, e não há outro”) e de Isaías 45:7c (“Eu sou o SENHOR que faz todas estas coisas”) funcionariam, então, como uma crítica a tal dualismo.(7) Embora tal interpretação seja possível, contudo, Yasna 44:5 (um texto que, grosso modo, lembra Isaías 45:7) apresenta Ahura Mazda como o criador tanto da luz quanto da escuridão: “Que artista fez a luz e a escuridão? Que artista fez dormir e acordar? Quem fez manhã, tarde e noite, que chama o homem de entendimento para o seu dever?”.(8)  Diante dessas informações, perguntamos: será que Isaías 45:7 reflete o pensamento do Zoroastrismo persa? Embora tal hipótese seja possível, ela parece improvável. Em vez disso, é melhor entender Isaías 45:7 como uma simples e natural expressão da fé monoteísta judaica. Em outras palavras, “como o único Deus (v.7), o Senhor é também o único Criador de todas as coisas, da luz e das trevas, do bem e do mal”.(9) Essa interpretação parece encaixar-se mais naturalmente na passagem ora em estudo.

Bem, mas se Deus é o Criador de todas as coisas, então isso não significa que ele também é o Criador do mal moral? Para responder a esse questionamento, devemos compreender melhor o sentido do termo hebraico ra‘, mencionado em Isaías 45:7. Como a palavra hebraica ra‘ abrange uma ampla gama de significados, então, somente o contexto em que tal terminologia ocorre poderá determinar o sentido preciso do vocábulo. 

No caso de Isaías 45:7, ra‘ refere-se a “épocas de aflição”, a “calamidades, desastre ou prejuízo” trazidos como retribuição sobre aqueles que praticam ações malignas. Portanto, em Isaías 45:7, ra‘ não se refere ao mal moral, mas sim à “destruição” ou “desastre” resultantes do justo juízo de Deus, o qual virá contra aqueles   indivíduos/povos que escolheram livremente viver um estilo de vida que mereça tal juízo. Além disso, esse versículo (ou qualquer outro) não ensina que todos os desastres da história sejam causados por Deus. Em vez disso, ele apenas afirma que Deus pode trazer desastres a fim de punir indivíduos por seus pecados se ele assim desejar fazê-lo.(12)

Em suma, diante de todos os apontamentos feitos até aqui, podemos concluir o presente texto tecendo duas considerações finais. 

Em primeiro lugar, uma vez que é dito sobre Deus que “não há nele injustiça; justo e reto é” (Dt 32:4), que “o mal não habita com o Senhor” (Sl 5:4) e que “Deus é luz, e não há nele treva nenhuma” (cf. 1 Jo 1:5), logo, é impossível que Deus seja o Autor/Criador do mal moral.

Em segundo lugar, “a ação atribuída a YHWH em Isaías 45:7 refere-se unicamente à libertação iminente de Israel do seu cativeiro babilônico. As frases positivas ‘que formo a luz’ e ‘que faço o bem-estar’ têm a ver com a intervenção salvadora de YHWH em favor do seu povo, enquanto que as frases negativas ‘que crio a escuridão’ e ‘que crio a aflição’ referem-se à destruição de Yahweh do império babilônico”.(13) 

Sendo assim, não há nenhuma boa razão para acreditarmos que Isaías 45:7 ensine que Deus seja o Autor/Criador do mal moral.(14)


NOTAS:

(1) Doutor em Estudos Judaicos, com concentração em Estudos da Bíblia Hebraica, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) – Departamento de Letras Orientais (DLO) – da Universidade de São Paulo (USP, 2016); Mestre em Teologia, com especialização em Teologia Bíblica, pelo Seminário Teológico Servo de Cristo (STSC, 2009); Graduado em Teologia pela Faculdade Betel / Instituto Betel de Ensino Superior (IBES, 1999) e também pela Escola Superior de Teologia (EST). Atualmente leciona diversas disciplinas bíblico-teológicas no Seminário Teológico Evangélico do Betel Brasileiro (STEBB), no Seminário Teológico Servo de Cristo (STSC) e também na Faculdade Evangélica de São Paulo (FAESP), ambos situados na capital paulistana. É biblista, hebraísta e teólogo. Autor dos livros Manual de Demonologia (Fonte Editorial, 2011), Expiação Ilimitada (Editora Reflexão, 2015), As Dez Pragas e a Abertura do Mar (Editora Reflexão, 2017), Jonas: Introdução, Tradução e Comentário (Editora Reflexão, 2018) e Habacuque: Introdução, Tradução e Comentário (Editora Reflexão, 2020) e coautor das obras Igreja Reformada Sempre Sendo Reformada (Editora Reflexão, 2017) e Missão Urbana: Servindo a Cristo na Cidade (Editora Mundo Cristão, 2020). Desde maio de 2020 integra o comitê da Biblica (antiga The International Bible Society) para a revisão da Bíblia NVI (Nova Versão Internacional) em português, a partir das línguas originais.

(2) Confira: <https://www.patheos.com/blogs/daylightatheism/2007/01/little-known-bible-verses-v-god-creates-evil/>. Consultado em: 30/05/2021.

(3) CHEUNG, Vincent. The Author of Sin. Morrisville, Lulu Press, Inc., 2014, p.60.

(4) Minha tradução pessoal de Isaías 45:6b-7 a partir do Texto Massorético.

(5) Para um estudo mais detalhado dessa passagem, consulte: FOKKELMAN, J. P. The Cyrus Oracle (Isaiah 44,24-45,7) from the Perspectives of Syntax, Versification and Structure. In: RUITEN, J. Van & VERVENNE, M. [Eds.]. Studies in the Book of Isaiah: Festschrift Willem A. M. Beuken. [BETL | 132]. Leuven, Uitgeverij Peeters, 1997, pp.303-323.

(6) MCKENZIE, John. Second Isaiah. [The Anchor Bible | Volume 20]. New York, Doubleday, 1968, p.77.

(7) LAATO, Antti. The Devil in the Old Testament. In: FRÖHLICH, Ida & KOSKENNIEMI, Erkki. [Eds.]. Evil and the Devil. [Library of New Testament Studies | 481]. London and New York, Bloomsbury T&T Clark, 2013, p.16. O locus classicus do dualismo persa é o hino Yasna 30, cujo texto, em iraniano antigo (acompanhado de sua tradução para o inglês), pode ser consultado aqui: <https://lrc.la.utexas.edu/eieol/aveol/40>. Acessado em 30/05/2021. Yasna é o nome dado à coleção de textos litúrgicos do Avesta, o principal documento religioso do Zoroastrismo.

(8) BEVAN, Edwyn. Symbolism and Belief. New York, Routledge, 2014, pp.130-131.

(9) RIDDERBOS, J. Isaías: Introdução e Comentário. [Série Cultura Bíblica | Volume 17]. São Paulo, Vida Nova, 1995, p.374.

(10) LIVINGSTON, G. Herbert. ra‘a‘. In: HARRIS, R. Laird, ARCHER, JR., Gleason L. & WALTKE, Bruce K. [Orgs.]. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, Vida Nova, 1998, p.1442.

(11) BAKER, David W. r‘‘. In: VANGEMEREN, Willem A. [Org.]. Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. [Volume 3]. São Paulo, Cultura Cristã, 2011, p.1149.

(12) BOYD, Gregory A. & EDDY, Paul R. Across the Spectrum: Understanding Issues in Evangelical Theology. Grand Rapids, Baker Academic, 2009, pp.44-45.

(13) DOHMEN, C. r‘‘. In: BOTTERWECK, G. Johannes, RINGGREN, Helmer & FABRY, Hans-Josef. [Eds.]. Theological Dictionary of the Old Testament. [Volume XIII]. Grand Rapids, Wm. Eerdmans Publishing Co., 2004, p.576.

(14) Esse argumento é fortalecido ainda mais pelo fato de O Grande Rolo de Isaías (1 QIsaa) substituir o termo shalom (“paz, bem-estar”) pelo vocábulo tob (“bem”), conferindo, portanto, ao mesmo, um caráter ético que, até então, ele não possuía. Para consultar O Grande Rolo de Isaías (1 QIsaa), em hebraico, que, em Isaías 45:7, no lugar de shalom (“paz, bem-estar”), traz a leitura variante tob (“bem”) – “Eu formo a luz e crio a escuridão; Eu faço o bem e crio o mal. Eu, o Senhor, faço todas essas coisas” – confira: <http://dss.collections.imj.org.il/isaiah#45:7>. Acesso em: 19/05/2021.