Um coração flechado pelas Escrituras: a influência de Agostinho sobre os reformadores

Davi Chang Ribeiro Lin
6/11/2019
Devocional

Não existe dúvida que o pai da Reforma Protestante, o monge agostiniano alemão Martinho Lutero (1483-1546), leu e memorizou parte das obras de Agostinho de Hipona (354-430). O bispo africano de Hipona, que viveu nos séculos IV e V em meio a decadência do antigo Império Romano, foi uma referência pastoral e teológica que auxiliou os reformadores a discernirem como a graça de Deus confrontava a corrupção da igreja do século XVI. Reformas acontecem quando, ao redescobrirmos as referências do passado, as sementes fecundas de nossa herança fertilizam o tempo presente; e, por meio da ação de seu Espírito, Deus faz brotar um caminho para o futuro.

Uma das sementes agostinianas que fecundou a Reforma foi a integração entre a vida monástica dos agostinianos com a vida acadêmica da universidade de Wittenberg. Martinho Lutero viveu em meio a um renascimento da conexão entre o monastério e a universidade. Sob a influência do vigário geral dos frades agostinianos da Alemanha, Johann von Staupitz, cerca de 150 monges agostinianos estudaram na recém-fundada universidade entre 1502 e 1522. Em uma universidade que tinha Agostinho de Hipona como o santo patrono, cultivava-se a conexão entre piedade e estudo acadêmico, um intelecto integrado ao afeto transformado, uma teologia orante. O coração inflamado, flechado pelas Escrituras, é desde o século XV o símbolo da ordem monástica dos Agostinianos. No impacto com a Bíblia, Deus traspassou o coração de Lutero, a chama se acendeu, o terreno fértil para uma reforma se iniciou.

Na redescoberta dos escritos de Paulo e Agostinho, Lutero forjou sua própria concepção teológica. Lutero rejeitou a teologia filosófica da escolástica, que bebia de Aristóteles e Tomás de Aquino (e que nem sempre integrava cabeça e coração) e aderiu a uma teologia bíblica com implicações pastorais. Entre os anos de 1515-1517, Lutero mergulhou nas cartas paulinas de Romanos e Gálatas, além das obras anti-pelagianas de Agostinho (as quais estuda deste 1509). É esta recepção agostiniana que faz João Calvino afirmar que Agostinho, uma das grandes referências da Igreja Católica, estava na verdade no lado dos reformadores.

O resultado da apropriação bíblica e agostiniana por Lutero foi um confronto pastoral e teológico: pastoral no questionamento ao dominicano Johann Tetzel, que vinculava remissão dos pecados à compra de indulgências; e teológico que protestava contra uma perspectiva otimista da natureza humana, que negava sua corrupção total. Nesta visão, o ser humano carrega em si mesmo a força para amar a Deus, e caso faça o que está a seu alcance, Deus não negará sua graça (estilo “Deus ajuda a quem cedo madruga”). Lutero reage através da concepção agostianiana do ser humano incapaz de levantar-se por si, um pecador autocentrado e encurvado em si mesmo (homo incurvatus in se). O pecado faz do humano um ser dependente de Deus. Quem retorna ao seu próprio coração torna-se consciente de sua impotência para realizar sua salvação sem Deus.

Através do sacrifício da cruz, todo aquele que acredita em Cristo recebe um status de pecador perdoado e justificado. Para os reformadores, justificação não é graça infusa na alma (Tomás de Aquino), mas um ato de Deus que declara o pecador justo, apesar de internamente ele permanecer pecador (simul justus et peccator). A graça é justiça imputada pelo sacrifício vicário e a justificação acontece através da fé que crê na obra redentora do Cristo. O justo, portanto, viverá pela fé (Rm1:17). Lutero reagia a seu tempo ressaltando que não existe indulgência ou condenação que irá nos afastar do amor de Deus que está em Cristo Jesus. E apesar de internamente permanecermos pecadores, fomos declarados sem débito, pois recebemos o crédito do Filho.

Voltemos ao nosso tempo presente, pouco mais de 500 anos depois do início da Reforma Protestante. Se a recepção do legado de Agostinho tem sido diversa e plural, estamos em um período de redescoberta da herança de Agostinho no contexto brasileiro, tanto entre Protestantes quanto entre Católicos. Destaco o recente lançamento de duas obras: a excelente enciclopédia “Agostinho através dos tempos” (Editora Paulus), e a acessível obra de introdução “Agostinho para todos” (Editora Ultimato). Quem sabe Agostinho não se torna uma referência para uma reforma da igreja brasileira no século atual? Certamente, nossa geração vive em tempos turbulentos como os de Agostinho e Lutero. Não sabemos como o Espírito vai soprar, mas sabemos que Ele continua avivando a igreja; e que o coração flechado pelas Escrituras continua sendo um jeito de Deus acender a chama que reforma sua igreja.


“Traspassaste meu coração com tua palavra e eu te amei” (Agostinho de Hipona, Confessiones, 10.6.8)

“Que de ti me lembre, que te compreenda e que te ame! Faze-me crescer nesses dons, até que me reformes integralmente” (Agostinho de Hipona, De Trinitate, 15.28.51)