Tolle et lege!

Paulo Won
2/5/2019
Línguas Originais

Em meados dos anos de 2013-2014, eu me juntei a um grupo de alunos do Servo de Cristo que, sob a supervisão do Dr. Estevan F. Kirschner, reunia-se em média duas vezes por mês para estudar, de forma informal, o texto do Novo Testamento em grego. Éramos seis que por um ano mantivemos essa sagrada rotina! O nosso exercício era “simples”. Antes das aulas, traduzíamos e preparávamos os nossos comentários em um texto previamente combinado. Ao reunirmos, nós líamos em voz alta o texto e também compartilhávamos as nossas conclusões sobre o texto. Fora alguns trechos de Filipenses e Apocalipse, lembro que traduzimos a carta aos Efésios inteira. Eu posso dar a certeza aos leitores que esse exercício comunitário teve efeitos profundos na minha vida, tanto como acadêmico, como quanto seguidor de Jesus.

Um ano depois, em 2015, embarquei para a maior aventura da minha vida. Com dois filhos (ainda tínhamos 2) e minha esposa, a Juliana, fomos fazer um mestrado em Estudos Bíblicos na Universidade de Edimburgo. Lá, ao escolher as disciplinas para formar a minha grade curricular, eu me concentrei, quase que exclusivamente, no estudo avançados das línguas originais: grego e hebraico. Para você ter uma ideia, na primeira aula de exegese de Tessalonicenses tutoriado pelo dr. Matthew Novenson, ele entregou aos alunos uma fac-símile de um manuscrito antigo com o texto em grego de 1Ts capítulo 1. E o exercício era também “simples”: tal qual fazíamos nos nossos encontros no Servo, cada um lia uma linha, traduzia e comentava. Foi assim com as demais disciplinas de grego e hebraico. Todos os professores usavam basicamente o mesmo método: ler, traduzir e comentar, ler, traduzir e comentar. Unia-se o estudo individual ao estudo comunitário. As minhas conclusões eram compartilhadas em público e colocados para a crítica dos pares.Desse exercício tríplice de ler, traduzir e comentar, a melhor parte, para mim,era ouvir as pessoas lendo em voz alta o texto em grego e hebraico. Pessoas vindas de diferentes partes do mundo — Malawi, Filipinas, Canadá, Estados Unidos, Brasil, Polônia, Japão, Coreia — lendo o mesmo texto. Com os olhos atentos no texto e com os ouvidos acompanhado a leitura, éramos levados à séculos no passado. Que experiência!

Compartilho isso por acreditar que a leitura pública dos textos originais deveria ocupar uma parte maior dentro das nossas disciplinas de grego e hebraico (sem falar nas disciplinas de exegese do AT e NT). E digo isso por duas razões. Primeiramente, o conhecimento da gramática não garante a compreensão de um texto bíblico, tanto em grego, como no hebraico. É analisando a vida real, lendo os textos, é que vemos como agramática serve aos propósitos do autor, e não o contrário. É fato que todos lemos, mas ler em voz alta traz um “quê” a mais. Quando lemos em voz alta,nossos ouvidos são treinados. Nossa capacidade de leitura é desenvolvida. Nossa intimidade com o texto aumenta. Mesmo que você não tenha um bom conhecimento gramatical, a leitura frequente do texto em grego ou hebraico treina nosso ouvido com a musicalidade da língua. Faz com que aprendamos os vocabulários não por meio daquela lista enfadonha de palavras, mas pelo seu uso em cada lugar. O aprendizado das línguas originais deixam de ser, portanto, um exercício que tira o sono de qualquer seminarista. Passa a ser um processo de constante descoberta. E é esse processo que é o elemento chave do estudo da palavra de Deus.

Temos mais um motivo para a importância da leitura, e sobretudo, a leitura em voz alta. Os documentos bíblicos, pelo menos do Novo Testamento, foram escritos para serem lidos, basicamente, em voz alta. Não são apenas tratados nos moldes das grandes peças filosóficas clássicas. São textos que foram escritos para serem lidos, em voz alta, em cada comunidade onde esses escritos chegassem. Aliás, a leitura pública da Bíblia ainda faz parte das nossas liturgias, como reflexo desse costume santo que as primeiras comunidades cristãs praticavam. Ler o texto no original em voz alta faz-nos participar, de forma reduzida é claro, da experiência dos primeiros cristãos (tradição), que não dispunham de cópias bem editadas da Bíblia, apenas uma cópia que era lida e comentada das reuniões.

Os textos nos originais formam uma grande partitura que espera ser sonorizada. A você, seminarista, pastor ou amante das línguas originais, deixo um desafio: tolle et lege! Pegue o seu texto nas línguas originais (físico ou on-line) e vá para um canto e leia. Incorpore a leitura em voz alta dos textos em grego e/ou hebraico no seu exercício devocional. Leia, leia, leia. Mesmo que você não compreenda, leia. Mesmo que você tenha dificuldade com a gramática, leia. Não existe atalho. Existe disciplina. Então, leia.