Quaresma e Quarentena

Luiz Fernando dos Santos
22/3/2021
Devocional
Espiritualidade

“Fui crucificado com Cristo. Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. A vida que
agora vivo no corpo, vivo-a pela fé no filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2.20).

Esta é a segunda quaresma vivida dentro desta longeva quarentena. Coincidentemente ambas
derivam do numeral quarenta e ambas indicam um tempo de espera, de expectativa para uma
boa notícia. As quarentenas são tempos preventivos, na maioria das vezes ou de confinamento
temporário para frear, controlar e erradicar um mal, mas também, aguardando que possíveis
males não se manifestem. A quaresma por sua vez, muito identificada com um tempo de luta
contra os poderes da carne, do mundo e do inferno, um tempo de cura das enfermidades
espirituais, erradicação de vícios e o cultivo da piedade pelo incremento das disciplinas
espirituais e práticas de boas obras. E, qual o seu objetivo? Preparar a igreja para celebrar com
o máximo proveito espiritual a solenidade da Páscoa do Salvador Jesus. As restrições impostas
por esses dias, sobretudo as restrições de locomoção, poderiam ensejar um tempo de maior
convivência no seio da família nuclear, um tempo de incremento da devoção pessoal e do
culto familiar, um tempo de maior compreensão do que significa ser igreja, inclusive. Contudo,
os dias foram se passando, as pessoas foram se cansando e as fugas foram aparecendo. Fugas
sem sair do lugar, maratonas e mais maratonas de séries da Netflix, GloboPlay e Canais Disney
e etc. Uma verdadeira overdose de mundanização, de cultura popular ateia e destituída de
significados profundos. Não pensem que essas horas gastas nessas maratonas são moralmente
neutras. Absolutamente. Uma hora a conta chega, mais cedo que o esperado, mas chega. E
uma delas é o desenvolvimento da impaciência e da incapacidade de participar com proveito e
com espírito voluntário das programações virtuais da igreja, por exemplo. Mas, há também o
esfriamento para com as práticas devocionais pessoais e também a paulatina, mas crescente
insensibilidade para com o sofrimento do mundo, inclusive até um certo ceticismo em relação
aos acontecimentos ao ponto mesmo do negacionismo. As horas gastas nessas maratonas,
claro, insensibilizam o coração pela violência gratuita, pela banalização da vida, pela concepção
neurótica e egoísta do que é o amor a ponto de nos fazer esfriar no amor cristão pelo próximo
e de perder os sensos de empatia e solidariedade. O outro mal (sem ou depois da maratona) é
a fuga física. Em plena pandemia, levados e motivados por esse espírito egoísta e
autocentrado, muitos resolveram investir em lazer, viagens, passeios desafiando inclusive a
lógica e o bom senso. Se de todo não há pecado nessas “fugas” há sim uma demonstração de
como não conseguimos, em nossa cultura, viver aquilo que os pais da igreja chamavam de
“habitare secum”, ou seja, habitar conosco mesmo. Na verdade, não nos suportamos, não
suportamos a nossa vida, não estamos satisfeitos nunca e precisamos da sensação de que
sempre haverá uma saída, um lugar para onde fugir da nossa realidade. Temos muita
dificuldade de carregar a cruz das restrições, das privações, quando o significado que damos à
felicidade não se realiza, pelo menos não do jeito que nós desenhamos. A quaresma e a
quarentena nos lembram e nos ensinam que no caminho para a liberdade, para a felicidade,
para as grandes e mais importantes conquistas, é um caminho de renúncias, de conviver com
circunstâncias que não mudam a despeito do nosso desejo e por mais que esperneemos em
nosso orgulho inflamado. A quarentena e a quaresma nos forçam a esperar na graça, a
descansar na soberania divina, a não sermos tomados pela loucura de nos achar mais sábios
do que Deus.

Mas, há um outro elemento presente aqui, somos convidados a perceber que a
graça comum de Deus também age em nosso proveito. Se na quaresma ler mais a Bíblia,
jejuar, abster de certos alimentos, orar, dar esmola, fazer boas obras, traz benefícios
espirituais, na quarentena manter distanciamento, usar máscara, não aglomerar, não transitar
desnecessariamente, lavar as mãos e acreditar na vacina, também traz grandes benefícios
físicos e inclusive, salva vidas. Estamos todos saturados, cansados, vivendo no limite da
paciência e no limite de nossas capacidades emocionais. Contudo, uma quaresma dentro de
uma quarentena nos lembra também que o que estamos passando agora, sofrendo agora, as
provações e privações de hoje, não se comparam com aquelas do calvário, com aquelas
suportadas por Jesus. E é exatamente essa a principal lição desta quarentena quaresmal, ou
aprendemos a nos identificar com a cruz de Cristo e associar as nossas dores as dele, ou
viveremos este tempo com a frustrante sensação de alienação e absurdidade. Procure ver
Cristo crucificado nas dores desta hora, para vê-lo emergir glorioso quando a manhã da
ressurreição raiar sobre o mundo. Até lá, deixe-se crucificar!