Quando as fundações são abaladas
Quando Deus falou naquela ocasião, sua voz fez a terra tremer, mas agora ele promete: “Mais uma vez, farei tremer não só a terra, mas também os céus”. Isso significa que toda a criação será abalada e removida, de modo que permaneçam apenas as coisas inabaláveis. Uma vez que recebemos um reino inabalável, sejamos gratos e agrademos a Deus adorando-o com reverência e santo temor. Porque nosso Deus é um fogo consumidor (Hb 12.26-29 – NVT).
A Bíblia compara a vida a uma casa, um edifício. Às vezes a metáfora fala de indivíduos. Às vezes, de um povo. Somos levados a considerar cuidadosamente a maneira
como trabalhamos a edificação do edifício (1Co 6.18-20; Ef 2.20-22), já que a sua destinação é sagrada. Embora apareça em contextos diferentes, há duas constantes nessa metáfora. Uma é que a estabilidade desse edifício depende da qualidade das suas fundações. A outra é que a qualidade das fundações certamente será posta à prova (Mt 7.24-27; 1Co 3.9-15).
A carta aos Hebreus traz à memória de seus leitores o fato de que, em seu agir na história, Deus tem abalado os fundamentos do que chamamos de vida, povo, identidade, verdades, certezas, convicções, fé. Sua intenção é que, feito o abalo, permaneça somente o que é inabalável. E assim descobrimos que o inabalável não pode ser construído por nós. Não é nada que nossas mãos possam erigir. O inabalável é um reino recebido como dádiva, o reino do Deus que é fogo consumidor. Essas palavras fecham o que considero um dos capítulos mais penetrantes de toda a Bíblia sobre a santificação e a disciplina e antecedem imperativos relacionados ao amor mútuo.
Essa maneira de o autor da carta pensar o agir de Deus é valiosa. Podemos fazer o exercício que ele fez e olhar para o passado do povo de Israel. Abraão, Jacó, José,Moisés, Josué, Rute, Noemi, Ana, Samuel, Davi, Jeremias, Habacuque. Todos estes, e muitos outros, sofreram abalos. Sozinhos e como povo. A família em peregrinação, a crise familiar, a traição de irmãos, guerras e fugas, a doença e a morte dos familiares, ser um migrante, morte dos filhos, assassinato entre os filhos, exílio, perplexidade diante da injustiça. O Novo Testamento e a história da Igreja nos dão infindáveis outros casos-modelo de como o povo de Deus tem entendido as crises estruturais pelas quais passamos. O Filho de Deus sabe bem o que é ter suas fundações abaladas. Assim, trazemos à memória a nossa caminhada pessoal com Deus. Certamente identificaremos ocasiões em que, passado o susto, lembramos e percebemos que as nossas fundações foram abaladas. No entanto, tal abalo produziu algo excelente: revelou o que é inabalável.
Então, estejamos certos de que os fundamentos que nos sustentam serão abalados. Alguns abalos são esperados. Outros, nem tanto. Hoje, todos nós fomos submetidos a um grande tremor. A vida está sob ameaça por uma pandemia e as demais crises, além da saúde, que a seguirão. Choramos porque milhares morrem, e muitos mais perderão suas vidas. Sentimos o abalo. A história segue o seu movimento e estamos sujeitos aos abalos provenientes da disciplina do Senhor, como aos que fazem parte do curso da natureza. Sofremos outros causados pelas nossas más decisões, pelo pecado, pelas injustiças do mundo. Cada um de nós pode sentir essa crise de formas diferentes, bem como dar a ela respostas diferentes. Independente de tudo isso, abalos, que são crises a serem vividas e enfrentadas, fazem parte de um processo em que Deus está formando a imagem do seu Filho em nós. Vivemos sob a disciplina do Senhor. Isso é ser discípulo. Tudo o que acontece conosco, quer qualifiquemos como bom ou mau, “sabemos que Deus faz todas as coisas cooperarem para o bem daqueles que o amam e que são chamados de acordo com seu propósito. Pois Deus conheceu de antemão os seus e os predestinou para se tornarem semelhantes à imagem de seu Filho, a fim de que ele fosse o primeiro entre muitos irmãos” (Rm 8.28-30 – NVT).
O que fazemos quando os nossos fundamentos são abalados? Fundações abaladas revelam a fragilidade do que não permanece e que, por isso, não passa de entulho. O abalo mostra que temos carregado peso excessivo, que nos torna lentos (Hb 12.1-4). Revela ídolos, pecados, corações endurecidos, ouvidos cerrados, olhos fechados, sofismas, relações doentias, vícios, arrogância, ganância, cobiça, mãos que retêm o que se deveria entregar. Por isso, o que podemos fazer de melhor é aceitar o abalo e permitir que o abalável se torne o escombro que permanece apenas como memória do que jamais deverá ser matéria-prima para construção de edifícios novamente. Mas o abalo também revela o agir silencioso de Deus, incansável em sua vigília. Mostra ao mundo a sua graça se manifestando de tantas maneiras, em muitos casos, para além dos nossos horizontes. Quando abalados podemos abrir janelas para a eternidade enquanto estamos fechados entre paredes que parecem nos sufocar. Da eternidade ecoa a voz daquele que é o Alfa e o Ômega; o que é, que era e que está vindo (cf. Ap 1.8).
Oremos para que o abalo nas fundações avive em nós percepção de que a vida é um andar diante do Deus Santo, fogo consumidor, e faça renascer o santo temor e a reverência devidas ao Eterno. Que o abalo restaure em nós a consciência filial necessária para uma renovação do compromisso histórico, missional, da família de Deus. Que traga à realidade a devida adoração devida ao nosso Pai e Senhor.