Por uma teologia que leve a igreja à tristeza segundo Deus

Ziel Machado
30/10/2020
Espiritualidade

Aproximo-me do tema do racismo de forma muito humilde. Reconheço que há muitasvozes mais preparadas para este debate. Chego como alguém disposto a ouvir, a aprender. Sobre a dimensão teológica deste debate, considero ser muito importante o lugar onde nasce este esforço teológico de compreensão do tema, no qual a dor é a grande marca. Portanto, fui às cartas que Paulo escreveu na prisão, uma teologia pastoral que nasce marcada pelas implicações da obediência ao Senhor.

Na Carta aos Filipenses, escrita aproximadamente no ano 62, ele faz algumas afirmações que nos ajudam a entrar nesse tema. No versículo 6 do capítulo 1 ele diz: “Eu tenho certeza que aquele que começou a boa obra em você irá completá-la até o dia em que Cristo Jesus vai voltar”. Tomo esta palavra como uma advertência para que o meu esforço de compreensão teológica do tema esteja em sintonia com esta boa obra que Cristo começou em nós e, ele mesmo, vai completar. Sendo assim, não se trata de um esforço no qual estamos sozinhos.Estamos sendo movidos por aquilo que Cristo está fazendo em nós.

Mais à frente, Paulo diz assim: “Eu oro para que o amor de vocês transborde”(v. 9). Este seria um bom alvo para tal esforço teológico, a saber: que o mesmo resulte em mais amor. Um amor que nos permita “crescer em conhecimento e discernimento”. Um amor que nos permita viver “de um modo puro. Sem culpa, atéq ue Cristo volte”. Que nos faça “sempre cheios do fruto da justiça”. Estas realidades espirituais são fundamentais para tratarmos deste tema, pois são“frutos da justiça que vêm por meio de Jesus Cristo para glória e louvor de Deus”.

O tema do racismo para mim, antes deter sido um problema teológico, foi um problema existencial. Sou fruto de uma família mestiça, bisneto de Joaquina, que foi escrava e morreu quando eu tinha 8 anos de idade. Cresci numa família de brancos e negros. Minha bisavó Joaquina educou seus filhos, netos e bisnetos na lógica do branqueamento. Ela tinha muito medo de que a lei voltasse atrás e seus descendentes acabassem sofrendo como seus antepassados e ela mesma sofreram.

Na minha experiência pessoal, no contexto da família, o racismo ou temas relacionados à escravidão foram um silêncio absoluto. A gente notava alguns comentários depreciativos e jocosos, que depois eu pude identificar como sendo um tipo de racismo: o racismo recreativo. À medida que minha família conseguia,socialmente, atingir novos patamares, fui deparando-me com essa crise do brasileiro cordial.

Cresci numa igreja de periferia na qual a questão do racismo também não era tratada; havia um grande silêncio grande em relação a este e a muitos outros temas. Basicamente, nossa preocupação era povoar o céu. Era uma igreja também mestiça. Pouco a pouco, à medida que fui amadurecendo, estudando, isso se tornou um problema teológico para mim, que surgiu a partir de um questionamento: “Por que o silêncio da igreja num tema tão fundamental?”.

Depois, eu me escandalizei porque, além do silêncio, havia uma adesão a essa lógica racista. Por que a minha herança evangélica aderiu a essa situação? Até que, na década de 1980, já na juventude, deparei-me com uma situação na qual eu vi no ambiente da igreja um discurso racista dirigido a mim e a outras pessoas. Então, fiquei com estes três problemas teológicos: o silêncio da herança evangélica, a adesão e, para piorar, a prática e a justificativa explícita do racismo. Três condutas inconcebíveis para a fé cristã.

Desde que me tornei consciente disso, passei por um processo de enegrecer o meu pensamento, tentar conectar-me com esta parte de minhas raízes e pensá-la em relação a minha fé. Decidi educar-me no tema do racismo e, para isso, tenho ouvido muitas vozes dentro do cenário cristão, autores e autoras que podem me ajudar a entender a minha perspectiva cristã em relação ao racismo.

Um dos desafios que percebo para a teologia é o do reencontro com a história. Nós precisamos nos educar sobre o racismo para entendermos a profundidade desta realidade e, assim, ancorarmos nosso esforço teológico na realidade da dor que a história nos conta, uma dor ainda presente. É preciso instruir a nossa teologia com a história para conectar com as raízes dos nossos problemas.

Faço uma distinção aqui entre a confissão da fé cristã e a experiência histórica da comunidade cristã. São duas coisas que, ao longo da história, nem sempre estiveram coerentes e unidas uma à outra. Uma coisa foi a experiência histórica da comunidade cristã com relação ao tema do racismo, outra coisa é o que entendemos ser a confissão da fé cristã em relação ao ser humano, embora seja também um fato histórico a conivência e a promoção do racismo por determinadas formulações “cristãs”. Entender essas discrepâncias faz parte do desafio para entender o problema em questão. Por exemplo, como uma fé cristã,que é baseada no amor a Deus e ao próximo, falhou no esforço de curar essas mazelas sociais? Como a experiência histórica da comunidade cristã acabou relacionada a um sistema escravocrata? Como determinadas formas de compreendera fé cristã sustentaram e se tornaram cúmplices e promotoras da segregação? São perguntas com dimensões teológicas, mas profundamente enraizadas na história sobre a qual é preciso pensar seriamente.

Sendo assim, ouso propor um acercamento teológico que comece com a crítica,aliás, com a autocrítica. Temos de começar a revisar as tentativas de mordaças que a igreja “colocou” na Palavra de Deus e, de forma irreverente, “tentou”colocar no próprio Deus, tornando-se conivente, cúmplice e silenciosa diante do ultraje da escravidão moderna e de tudo que resultou dessa experiência.

A segunda coisa que eu gostaria de propor ao nosso esforço de compreensão teológica é a humildade. É preciso ouvir, reeducar-se nesta questão; precisamos entender o que aconteceu. É preciso trazer para o centro da conversa aqueles que estiveram à margem o tempo todo, aqueles que foram silenciados, aqueles que têm as cicatrizes no corpo e na alma. Precisamos de uma teologia que ouve atentamente a Deus, mas que ouve atentamente aqueles que têm sido sujeitos desta história.

Sugiro também uma teologia que trabalhe a dimensão do experimento, que se proponha a uma inovação pastoral contínua, que saiba lidar com as consequências desta escuta. Temos de dar novas respostas para esses problemas antigos, porque as respostas que temos dado não são adequadas.

Proponho audácia. Precisamos lidar com o racismo estrutural de forma audaciosa.É urgente que tenhamos propostas adequadas para lidar com esse problema.

Proponho uma teologia que nos leve à tristeza. Nós precisamos nos entristecer. Falo daquela tristeza segundo Deus, a que Paulo se refere: “A tristeza segundo Deus produz um arrependimento que leva à salvação e não remorso, mas a tristeza segundo o mundo produz morte” (2Co 7.10, NVI). Essa teologia deve levar a igreja à contrição, à tristeza profunda segundo Deus, que produz arrependimento e leva à salvação. Precisamos de uma tristeza que produza em nós o que produziu em Zaqueu (Lc 19.8). Quando se confronta com Cristo, ele se arrepende, se entristece e decide dar a metade dos seus bens aos pobres e devolver quatro vezes mais o que ele extorquiu. Uma tristeza assim pode resultar em um conjunto de respostas diferentes ao problema. Pode mostrar o caminho para uma sociedade mais ampla na prática da restituição e da reparação. Contudo, não esquecemos que é preciso um real encontro com Jesus Cristo. Nosso anúncio do evangelho deve levar as pessoas a Cristo, e elas devem entender as implicações deste encontro para todas as áreas da vida.

A nossa prática cristã precisa mudar de foco. Geralmente o foco da nossa vida cristã está no centro, nos poderosos, na fama, no status. Nos Evangelhos vemos Jesus prestando atenção na realidade que está à margem. O que está à margem que nossa experiência cristã não tem levado em conta? Temos de fazer uma teologia que lide seriamente com a dor que nossos olhos não vêem.

Temos a responsabilidade de, em nosso esforço teológico, incluir aqueles que são excluídos; incluir de forma adequada, de forma adulta. Não podemos esquecer que vivemos numa sociedade que marginaliza, exclui e produz banidos. Uma sociedade excludente impõe desafios ao nosso pensar teológico. Uma igreja“ajustada” a este modelo de sociedade não ouve, não integra e não será capaz de fazer uma teologia que leve a sério a história, as vidas e as dores deste mundo. Dessa maneira, pregamos um Cristo que se encarnou, mas evitando, nós mesmos, o desafio da encarnação.

Se temos o desafio do foco, o desafio da inclusão, temos também o desafio da restauração pela compaixão. É impressionante ver Jesus, nos Evangelhos,expressando modelos de compaixão por meio da atenção, do toque, da fala, da conversa. Falar, tocar, ouvir são modelos concretos de misericórdia.

Comecemos a partir do pequeno, redefinamos nossos centros, assumamos a tarefa de incluir e passemos a lidar seriamente com a questão dos nossos modelos pastorais de misericórdia.

Tenho esperança de que a tristeza segundo Deus produza em nós vida e salvação.Não é possível lidar com esse difícil tema sem o entristecimento adequado,porque é isso que produzirá em nós a disposição para restaurar, reparar,restituir, para fazer aquilo que é adequado. A teologia de mãos dadas com a história nos ajudará a entender e a nos educar sobre o que de fato aconteceu e vem acontecendo. Então poderemos ouvir a Deus, por meio de sua Palavra, e ouvir o mundo, e, assim, ter uma teologia que nasça da revelação de Deus em sua Palavra e se encarne na história para trazer cura a todas as nossas dores.Teremos uma teologia que nos faça de fato amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos.

Que nos unamos na luta contra o racismo, onde quer que ele se manifeste,inclusive, como tem sido a minha experiência, quando se manifesta em nós mesmos. A graça do Senhor é maior que esta dor e pode nos restaurar e mudar a nossa história.

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA ULTIMATO https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/385/por-uma-teologia-que-leve-a-igreja-a-tristeza-segundo-deus

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