O uso de _para physin_ em Rm 1.26

Bernardo Cho
11/10/2018
Línguas Originais

Não muito tempo atrás, uma pessoa me procurou bastante perplexa por conta de algo que havia ouvido no sermão do domingo anterior. A mensagem dizia que Paulo, em seu famoso argumento sobre a indesculpabilidade humana na Epístola aos Romanos, não retrata as ações descritas em Rm 1.26-27 como repreensíveis em si mesmas. Segundo o pregador, a expressão grega para physin no verso 26, traduzida na NVI por “contrárias à natureza”, conota algo que estava meramente fora das normas culturais da época. O fato de Paulo usar para physin para adjetivar a relação sexual de mulheres com mulheres – e, por implicação, de homens com homens também – sugeriria que tal prática, embora anormal, não é intrinsecamente incongruente com o caráter de Deus. Consequentemente, a crítica que Paulo faz em Rm 1.26-27 não se aplicaria mais ao nosso contexto.

“E aí, professor? É isso mesmo?”

Tem se tornado comum interpretar a ocorrência de para physin em Rm 1.26 como uma referência à mera “anormalidade” da coisa em questão. Além de encontrarmos uma breve discussão sobre o assunto no comentário exegético de Douglas Moo,[1] semelhante linha de interpretação tem sido popularizada por figuras como Rachel Held Evans e Matthew Vines no meio não-acadêmico.[2] O objetivo dessa leitura, obviamente, é tirar o peso acusatório das palavras de Paulo, sugerindo que o Apóstolo estava condicionado a um tipo de preconceito de seu próprio mundo.

De fato, é necessário reconhecer que para physin nem sempre carrega tons absolutamente negativos. Na única outra passagem em que a expressão ocorre em todo o Novo Testamento, Paulo diz que os ramos cortados da oliveira brava foram enxertados na oliveira legítima “contra a natureza [para physin]” (Rm 11.24). Em outras palavras, pela graça revelada no evento-Cristo, os gentios foram incluídos no povo escatológico de Deus, embora não pertencessem a ele “por natureza [kataphysin]”. Neste caso, é possível argumentar que o acento pejorativo está primeiramente sobre a condição “natural" dos incircuncidados, não sobre o que Deus realizou por Sua iniciativa a despeito dessa condição. Além disso, no próprio texto de Rm 1.26-27, para physin aparece em contraste com o adjetivo physikos, que, no português, normalmente tem o sentido de “natural” ou “instintivo”. A NVI traduz a passagem da seguinte maneira: “Por causa disso, Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até suas mulheres trocaram suas relações sexuais naturais [physikēn] por outras contrárias à natureza [para physin]. Da mesma forma, os homens também abandonaram as relações naturais [physikēn] com as mulheres e se inflamaram de paixão uns pelos outros.” Esta polaridade poderia ser relevante, porque Paulo usa o substantivo cognato de physikos – ou seja, physis – em outras instâncias, também em Romanos, num sentido neutro. Considere, por exemplo, Rm 2.14: “Pois quando gentios, que não possuem a lei, fazem as coisas da lei por natureza [physei], estes, embora não possuam a lei, são lei para si mesmos”. Nesta passagem, physis, que está no caso dativo e exige que adicionemos a preposição “por” na tradução, não atribui valor moral necessariamente positivo ao ato dos gentios “fazerem as coisas da lei” (veja também Rm 2.27). A implicação disso é que, em Rm 1.26, para physin poderia ter um sentido semelhantemente neutro do ponto de vista moral, de algo apenas “não-natural”.

E agora, Paulo? É isso mesmo? 

O problema com essa leitura é que ela ignora um aspecto determinante na interpretação correta do pensamento paulino: a normatividade de sua cosmovisão judaica. Conquanto o cenário em Rm 1.26-27 fosse visto com bastante ambivalência por boa parte dos contemporâneos de Paulo, para qualquer judeu do primeiro século, tais práticas certamente extrapolavam os limites não somente do que era culturalmente aceitável, mas principalmente do que era teologicamente normativo. Entre os povos do Mediterrâneo Antigo, eram os judeus em particular, com sua ética profundamente embasada na Torá, que tinham uma visão muito bem definida sobre a sacralidade do sexo e das relações conjugais. Basta prestar atenção ao famoso texto de Levítico 18, por exemplo, para perceber que, desde muito cedo, a visão bíblica sobre a união entre homem e mulher se distinguia significativamente daquelas presentes em outras culturas (cf. Gênesis 1–2). Essa ênfase, aliás, veio a ser eventualmente adotada pelos Samaritanos também, uma vez que o Pentateuco passou a ocupar lugar de prestígio na teologia daquele grupo (cf. Jo 4.4-6, 16-18).

Ademais, uma breve análise do uso de para physin em alguns escritos judaicos contemporâneos ao Novo Testamento deixa bastante claro que a expressão poderia, sim, ter conotações intrinsecamente negativas. Fílon de Alexandria (ca. 20 a.C.–ca. 50 d.C.) é de relevância especial, pois oferece evidências inquestionáveis para o sentido tradicionalmente atribuído a Rm 1.26-27. No tratado Sobre a Posteridade de Caim e seu Exílio, Fílon lança mão precisamente da expressão para physin para categorizar vícios como, por exemplo, a impiedade, o amor próprio, a arrogância e a falsidade (Post. 52). De modo bastante consistente, em Sobre a Obra de Noé como Plantador, a condição descrita como para physin se faz visível por meio de hábitos doentios (Plant. 157). Poderíamos citar ainda outras passagens, mas as mencionadas já bastam para ilustrar o nosso ponto (e.g., Conf. 68, 75; Abr. 27). Em Fílon, portanto, implícita à caracterização de algo como para physin, está, em muitos casos, uma conotação negativa, de algo que vai contra a ordem criacional de Deus. (Até que ponto Fílon usa para physin a partir de uma matriz conceitual helenista [e.g., Ebr. 105, 180, 190; Fug. 112], e quão nitidamente diferentes são os seus métodos interpretativos da hermenêutica bíblica de Paulo, são assuntos que não nos interessam na presente discussão.) Isso mostra que, para um judeu do primeiro século, algo “não-natural” pode transcender –­ e muito – a mera incongruência com determinadas normas culturais. Dependendo da ênfase da passagem, para physin pode conotar a violação da lei natural estabelecida pelo próprio Criador do cosmo.

O ponto mais importante, porém, é que, no contexto mais amplo em que Rm 1.26-27 está inserido, o contraste entre physikos e para physin acontece em paralelo com outras duas polaridades anteriores, que fazem referência à idolatria e ao engano da humanidade. Ou seja, a prova de que os seres humanos têm suplantado a verdade (Rm 1.18) é que eles, primeiramente, trocaram a glória do Deus imortal por imagens semelhantes a seres criados (Rm 1.23) e, subsequentemente, trocaram também a verdade de Deus pela mentira (Rm 1.25). Observando os contrastes, de um lado, entre o Deus imortal e os ídolos fabricados, e, de outro lado, entre a verdade e a mentira, fica transparente que o tom das palavras de Paulo no contexto imediato de Romanos 1 é absolutamente negativo. Com isso em mente, é crucial notarmos que Rm 1.26-27 não somente está posicionado numa relação de causa e efeito com aquilo que é afirmado nos versos anteriores – note a expressão “Por esta razão [Dia touto]” logo no início do verso 26 –, como também segue a mesma ênfase de Rm 1.18-25. A afirmação de que Deus entregou a humanidade às suas próprias paixões “vergonhosas [atimias]”, portanto, necessita que para physin em Rm 1.26 seja lido como o próprio resultado da supressão da verdade por parte dos seres humanos. Em outras palavras, tais práticas “não-naturais”, ou “contrárias à natureza”, são a consequência de que “a ira de Deus é revelada do céu contra toda impiedade e injustiça dos seres humanos” (Rm 1.18), representando, em si mesmas, “a retribuição [divina] que era necessária por seu erro” (Rm 1.27).

É verdade que, em Rm 1.18-32, Paulo não tem o interesse de oferecer uma lista exaustiva dos pecados, digamos, mais abomináveis, nem tampouco de sugerir que as pessoas engajadas em tais ações fazem parte do pior tipo de gente que pode existir. Não podemos nos esquecer de que os versos 26-27 ocorrem em continuidade também com aquilo que vem em seguida. E, em Rm 1.28-32, Paulo lista muitas outras transgressões – a ganância, a maledicência e a desobediência aos pais, por exemplo –, acusando o seu interlocutor judeu de Rm 2.1 de ser igualmente indesculpável diante de Deus por praticar tais coisas. É muito mais provável que a intenção de Paulo em Rm 1.18-32 tenha sido sustentar o seu argumento com os problemas mais claramente identificáveis pelos membros de sua audiência romana no primeiro século. De todo modo, ainda que alguém sinta a necessidade de contextualizar Rm 1.18-32, a hamartiologia (veterotestamentária) de Paulo é bastante abrangente. O pecado, para ser pecado, não precisa se fazer evidente por meio da transgressão ativa de uma ordenança. Pecado é também a negligência passiva de dar a Deus a glória e a gratidão que lhe são devidas (Rm 1.21), é viver uma vida dissonante daquela originalmente desenhada em Sua Criação.

É imperativo que aqueles que confessam o nome de Jesus aprendam a articular o evangelho de maneira atrativa, especialmente no que diz respeito aos impactos que a ideologia de gênero têm causado sobre a Igreja nos dias de hoje. Mas isso não pode, em hipótese alguma, acontecer às custas da fidelidade. E tentar diminuir o tom crítico de Paulo quanto ao fenômeno descrito em Rm 1.26-27 é, no melhor dos casos, engajar-se no exercício da eisegese, distorcendo o que o Apóstolo de fato quis transmitir.


[1] The Epistle to the Romans, NICNT (Grand Rapids: Eerdmans, 1996), 114–5.

[2] Não me dei ao trabalho de verificar se Evans e Vines chegaram a publicar algum tipo de argumento substancial sustentando tal leitura. Uma breve busca no youtube, porém, revela a popularidade de suas posições sobre o assunto em questão.