O Mal Banal

Luiz Fernando dos Santos
2/6/2021
Etica e Política

“Pensem nisto, pois: Quem sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4:17)

‘Banalidade do mal é uma expressão criada por Hannah Arendt (1906-1975), teórica política
alemã, em seu livro Eichmann em Jerusalém, cujo subtítulo é "um relato sobre a banalidade do
mal". Em Eichmann em Jerusalém, Arendt retoma a questão do mal radical kantiano,
politizando-o. Analisa o mal quando este atinge grupos sociais ou o próprio Estado. Segundo a
filósofa, o mal não é uma categoria ontológica, não é natureza, nem metafísica. É político e
histórico: é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço institucional
para isso - em razão de uma escolha política. A trivialização da violência corresponde, para
Arendt, ao vazio de pensamento, onde a banalidade do mal se instala’ (1) .

Escrevo essa pastoral com a celeridade e a brevidade que o texto exige, cujo escopo principal,
é levar sempre uma palavra de reflexão e esperança para a Igreja que pastoreio, por isso
mesmo, não posso e não fiz uma pesquisa mais ampla e me dei por satisfeito com o que
encontrei nessa conhecida biblioteca digital. Vivemos dias difíceis e a cada dia me surpreendo
como o mal tem sido banalizado de muitas maneiras nessa pandemia. O mais triste e o já
esperado, é que essa banalização vem dos nossos líderes políticos e também religiosos.

O modo como lidam com as perdas irreparáveis de cada momento, o deboche escancarado à
luz do sol como priorizar temas e assuntos que não tem absolutamente nada a ver com a
ordem do dia, como a liberação de armas ou se a Copa América pode ou não ser disputada no
Brasil e etc., justamente às vésperas de uma possível terceira onda da pandemia, é um descaso
de lesa-humanidade.

Claro, que ao ler-me, muitos se levantarão para dizer que escrevo porque sou contra o
governo ou porque sou comunista. Bom, nem uma coisa nem outra. Como cristão e como
pastor é meu solene dever orar pelas autoridades: “Antes de tudo, recomendo que se façam
súplicas, orações, intercessões e ação de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os
que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a
piedade e dignidade. Isso é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador, que deseja que
todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade” (1 Tm 2.1-4). O como
pastor ainda, sei que é no melhor interesse do povo de Deus que esse governo ou qualquer
outro, seja exitoso: “Busquem a prosperidade da cidade para a qual eu os deportei e orem ao
Senhor em favor dela, porque a prosperidade de vocês depende da prosperidade dela"; (Jr 29.7).
Esse é um princípio geral das Sagradas Escrituras.

Entretanto, também é meu dever, pelo menos com a minha consciência, não me deixar levar
pelos irracionais passionalismos das ideologias de plantão. Não posso deixar de constatar e
de sentir que desde o início em uma espiral crescente, o mal foi e está sendo banalizado na
pandemia. As expressões infelizes e desalmadas, os gestos truculentos, as ameaças soltas no
ar, as palavras pesadas e de intimidação, as narrativas descoladas da realidade e
completamente falaciosas (mentirosas até), a politização politiqueira da crise sanitária sempre
aquecida e alimentada pela voraz fogueira das vaidades, o insistente discurso de transferência
de responsabilidade.

Tudo isso, somados ao mau uso dos minguados e sempre demorados repasses das verbas
públicas por um grande número de gestores Brasil a fora, configuram essa banalização do mal,
que nada mais é, do que a banalização da vida.

A Igreja não deve se intrometer nos negócios do Estado, este possui uma esfera própria e
legítima de atuar. Entretanto, isso não significa que ela não tenha nada a dizer, ela existe
entre outras coisas para ser uma espécie de consciência para o Estado. Consciência, diga-se
de passagem, para chamar a atenção do Estado para cumprir a sua essencial missão de
defender a vida humana em sociedade, coibir o mal, impor limites ao pecado em forma de
crimes e injustiças e promover o bem de todos e garantir a dignidade da vida humana.

Assim, não cabe a Igreja apoiar ou se opor politicamente, mas manter-se em sua missão
profética de reivindicar do Estado que cumpra com suas obrigações. Contudo, os cristãos
individualmente, como parte dos mandatos cultural e social recebidos ainda no Éden, e como
condição de cidadãos conscientes, podem e devem se engajar na política partidária ou não e
ali, fiel à sua consciência e à luz das Escrituras, apoiar criticamente o governo de ocasião ou
plataforma política vigente, opor-se a eles de maneira contundente e propositiva, quando os
mesmos (governo e plataformas), estão aquém ou além de suas competências, da
moralidade e da probidade que lhes são exigidas e nunca podem ser negociadas.

Banaliza o mal quem perde o senso da realidade, da crítica, quem não faz escolhas discernidas
e é incapaz de enxergar o mundo sem a compaixão necessária, sem empatia. Quase 500 mil
mortos não são apenas números, é a anatomia do mal banal.

(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Banalidade_do_mal