Natal, a festa do corriqueiro

Luiz Fernando dos Santos
17/12/2020
Devocional

“No sexto mês Deus enviou o anjo Gabriel a Nazaré, cidade da Galiléia, a uma virgem

prometida em casamento a certo homem chamado José, descendente de Davi. O nome da

virgem era Maria” (Lc 1.26,27).

A descrição dos fatos narrados nos Evangelhos de Lucas e Mateus sobre a anunciação e o

nascimento de Jesus, dois belíssimos retratos do Natal, é desconcertante quando prestamos a

atenção em cada aspecto das narrativas. No contexto da anunciação, Lucas faz questão de

ressaltar o caráter decididamente ordinário da vida de Maria até a aparição do Anjo. Uma

moça que em nada diferençava das outras que habitavam aquele vilarejo. Aliás, o vilarejo

também revela ser um lugar comum, obscuro, mal afamado inclusive, um vilarejo de

agricultores e pessoas simples. Maria era um pouco mais que uma adolescente, já prometida

em casamento como era o uso e o costume do seu tempo, que se ocupava dos afazeres

domésticos mais triviais, sem grandes expectativas, aguardava o dia do casamento com José. E,

José, por sua vez, era uma espécie de empreiteiro modesto, um trabalhador que ganhava o

pão suado de cada dia com a sua profissão nada especial. Sua grande aspiração, quem sabe,

seria o desposar Maria e constituir uma família ordinária, mesmo sabendo ser da descendência

de Davi, sabia do seu lugar na história e no mundo, um simples carpinteiro de Nazaré. Já a

narrativa do nascimento nos faz enxergar a condição simples e humilde de Maria e José e a

hospedagem em uma estrebaria dão a medida do desamparo que sofriam por estarem tão

longe de casa, dos parentes e amigos. O presépio nos faz recordar a fala de Paulo “que sendo

rico se fez pobre por amor de vós” (2 Co 8.9). Um estábulo, seguindo a tradição, uns animais

domésticos, umas faixas, um berço improvisado, quem sabe um bocado de pão, um pouco de

azeite e não muito mais que isso. Depois, a vida como refugiados no Egito até o retorno para a

obscura Nazaré, onde Jesus cresceu indo aos sábados na Sinagoga, aprendendo o ofício do pai,

ajudando nas tarefas domésticas e convivendo e compartilhando as bênçãos e as provisões

diárias da graça com os seus irmãos por parte de mãe. O Natal nos recorda que as grandes

surpresas da graça irrompem justamente na vida corriqueira, ordinária, aquela da mesmice

de todo dia. Muitos cristãos deixam de crescer porque se sentem entediados com a ausência

de grandes aventuras, fortes emoções, feitos épicos e heroicos. Sonham com o dia que lhes

chegará a oportunidade de fazer alguma coisa que há de mudar a história, consagrar o seu

nome e sentir que valeu a pena a passagem por aqui. E nessa ansiedade e agitação, perdem o

foco do aqui e agora e desprezam os ordinários meios de graça, frequentar a igreja semana

após semana, como fala Michel Horton: “E a cada semana, nós pecadores medianos e santos

chatos nos ajuntamos em volta de pão e vinho comuns, e o próprio Cristo está ali conosco”.

Não percebem os quase invisíveis, mas jamais inexistentes, milagres do cotidiano que nos

conformam pela paciência, perseverança, rotina, abnegação e amor ao Jesus que nasceu

humilde em Belém e suportou a nossa contingência e miséria (exceto do pecado), de Nazaré

ao Calvário. Não há nada mais extraordinário e surpreendente do que cumprir a nossa rotina,

a nossa mesmice diária com a intenção de fazer tudo para que Deus seja glorificado, como

ensina Paulo: “Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo

para a glória de Deus” (1Co 10.31) e ainda a resposta primeira do Breve Catecismo de

Westminster: Qual o fim principal do homem? Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. De fato,

tirando todo o romantismo e as narrativa hagiográficas, a vida de um missionário em um

campo hostil é admirável e merece o nosso respeito, a nossa valorização e de maneira especial

a nossa oração e todo o nosso apoio. Claro que há grande dose de heroísmo, coragem e

martírio que podem ser evidenciados nas vidas preciosas de nossos missionários em contextos

de guerras, fomes extremas, opressão política e religiosa, ninguém duvida disso. Mas, não

menos heroísmo, perseverança, coragem e amor sacrificial podem ser encontrados na vida de

uma dona de casa com três filhos pequenos, um deles com febre, outro enjoado e um terceiro

que está com cólicas. Junte-se a isso a louça sobre a pia, as roupas na máquina de lavar e o

jantar para fazer. Não há menos martírio do que suportar um marido em um dia ruim ou uma

esposa com TPM, mais o dia pesado como o descrito acima. Exercitar o domínio próprio, a

longanimidade e a amabilidade, fruto do Espírito, no dia a dia é uma tarefa acima das forças

humanas, daí a nossa necessidade dos meios ordinários de graça, leitura bíblica, vida

devocional, frequência regular e assídua na igreja e etc. O Natal nos recorda que o cotidiano

esconde e ao mesmo tempo revela o amor de Deus, sua graça e seu poder que podem

realizar o impossível em nossa vida que parece tão pobre de possibilidades.