Memórias de um filho de pastor (segunda parte)

Ziel Machado
31/5/2017
Crônicas

Visitando minhas memórias com o filho de pastor, lembro-me que, ainda na adolescência, descobri os benefícios de uma possibilidade que a igreja oferece as suas famílias, a saber: uma rede ampliada de relações de cuidado. Existe uma variedade de modelos e experiências familiares que podem enriquecer a vida de cada um de seus membros. Costumo dizer aos meus filhos que eles devem atentar para outros pais e mães de nossa igreja, é possível que eles aprendam com outros aquilo que seus pais não foram capazes de ensinar. Como diz um ditado africano: “para fazer nascer uma criança é necessário um casal, mas para educá-la é necessário uma comunidade!”. O processo de urbanização acelerado e seu impacto sobre a família pode ser atenuado por esta rede de relações significativas na qual a família nuclear se encontra inserida.

Uma experiência que recordo com muito carinho é a de um amigo que, ainda adolescente, decidiu iniciar um grupo de estudo bíblico em sua escola como forma de compartilhar a sua fé. Um dia, enquanto orava em sua sala de aula, no período de intervalo, um jovem se aproximou e começaram a conversar sobre Jesus. No final da conversa o jovem não somente decidiu seguir a Cristo como revelou sua situação de orfandade, o que provocou um convite para que ele fosse a casa de meu amigo almoçar. Chegando ali, os pais de meu amigo ouviram toda a história e decidiram adotá-lo como membro de sua família. Um lar cristão que acolheu na fé e na família aquele que não conhecia a Jesus Cristo e que, até aquele momento, nunca havia vivenciado uma experiência de ser parte de uma família. Uma família como espaço de acolhimento e missão.

Seria muito bom que, a começar pelos lares dos pastores, as famílias de nossas igrejas pudessem aprofundar seus conhecimentos sobre os fundamentos bíblicos da família. Saber que nossa teologia deve começar em Genesis 1, pois é necessário compreender o propósito da Criação de Deus e estudar a família neste contexto. Saber que a família precede ao Estado, precede a Igreja, que a família é o primeiro espaço para o exercício daquilo que conhecemos como Mandato Cultural (Gn1. 26- 29), onde aprendemos a superar uma série de dicotomias que hoje a família cristã alimenta em seu projeto. Saber que, além disso, a família é um instrumento de Deus em seu projeto de Redenção (o Mandato Salvífico – 2 Co.5.20). Relembrar que quando Deus resolveu abençoar a todas as famílias da terra ele escolheu uma família (Gn 12), quando ele resolveu vir à Terra, uma vez mais escolheu uma família na qual nascer. Deus não somente deseja estar em família, como a família se tornou parte de seu projeto de benção e de redenção. Estas realidades nos revelam que a dinâmica familiar poder ir além do fortalecimento de vínculos de afeto e compromisso.

Certa vez li uma citação atribuída a Calvino que diz que “Timóteo sugou a piedade com o leite materno”. É fácil concordar com esta afirmação vendo a forma como Paulo enfatiza a importância da influência de uma fé não fingida, que estava presente na vida de Loide e Eunice, avó e mãe do jovem Timóteo. A presença de Cristo no lar modela o eixo no qual a família deve viver, relativiza as minhas convicções frente àquele que é o Senhor do lar, torna possível o perdão que viabiliza as relações, qualifica o conceito de compromisso de um com o outro, tomando por base aliança, que tem como modelo o pacto de Deus com o seu povo. Sendo Cristo o Senhor, o ego narcisista deixa de ocupar o trono, a paciência se torna inspiração para o modelo pedagógico, de forma a não subestimar os pequenos começos. A realidade da ressurreição do Senhor nos faz encarar cada situação com esperança, a misericórdia fornece elementos para a mesa aberta que acolhe e cuida. Tudo isso me leva a concordar com Martim Lutero que considerava o lar como uma escola de santidade.

Muitas famílias cristãs acabam fazendo com a igreja local o que fazem com a escola onde seus filhos estudam, elas transferem a sua responsabilidade na educação e na formação espiritual. O lar se torna apenas um teto sob o qual nos reunimos e passamos algum tempo por perto, não necessariamente juntos, considerando o impacto dos aparatos tecnológicos que nos afastam um dos outros, quando a ideia é aproximar as pessoas (grande ironia!). Minha mãe costumava dizer que todos nós um dia seremos convidados para o “jantar das consequências”. Portanto, esta transferência de responsabilidade tem um grande peso que, no fim do dia, recai sobre a família. Que o Senhor nos ajude a dar a devida atenção ao nosso lar e assim poder dizer como Josué: “eu e minha casa serviremos ao Senhor!”.

*Texto publicado originalmente na revista Liderança Hoje