Lectio Divina
“Não deixe de falar as palavras deste Livro da Lei e de meditar nelas de dia e de noite, para que
você cumpra fielmente tudo o que nele está escrito. Só então os seus caminhos prosperarão e
você será bem sucedido” (Js 1.8).
“Meditarei nos teus preceitos e darei atenção às tuas veredas” (Sl 119.15).
Volta e meia algumas práticas seculares do cristianismo antigo retornam como moda no
variado mercado da espiritualidade. Meditação, oração do coração (hesequía), jejum, direção
ou mentoria espiritual e por aí vai.
O mesmo acontece com a Lectio Divina, uma maneira de ler as Escrituras herdada da tradição
monástica. Já na Regra de São Bento, elaborada no século V, então ainda dentro do período
patrístico, se fala desta modalidade de abordagem bíblica. A Lectio Divina não menospreza,
como pensam alguns, o texto em sua língua original, em seu sentido literário, histórico e
gramatical e menos ainda se apoia em interpretações alegóricas e subjetivas.
A Lectio é uma leitura sapiencial e orante da Palavra de Deus. É sapiencial porque o seu
intento primeiro é abastecer o coração da sabedoria das Escrituras. Para esse fim, claro, a
mente já está abastecida das regras exegéticas e hermenêuticas indispensáveis. Todavia, o que
se busca é envolver agora os afetos e a memória para que o coração se prenda à Palavra
recebida. Um dos elementos mais importantes na Lectio Divina é o ‘decorar’ o texto. Vale
ressaltar que a expressão ‘decorar’ vem do latim ‘de córdis” que quer dizer, do coração.
Decorar na Lectio divina é um processo que os primeiros praticantes desta maneira de ler a
Bíblia chamavam de ruminação. Sim, é preciso ruminar as Escrituras até extrair todo o sabor
e todo o nutriente espiritual do texto. O processo de ruminação ajuda a fixar o texto nas
paredes da memória afetiva, uma maneira de prender a Palavra nos meandros do coração.
Os afetos são mais despertados na Lectio Divina quando a leitura deixa de ser feita na ‘terceira
pessoa’, isto é, quando o leitor deixa de ser um mero expectador distante do texto bíblico. A
Lectio Divina nos obriga a ler o texto na primeira pessoa, o que significa, que o drama, o
enredo do texto deve encontrar pontos de contatos com a minha história pessoal. Eu devo
assumir dentro do processo a minha participação ativa e efetiva no texto como um dos
personagens que sofrem a ação redentora. Assim, para ficar em exemplos mais fáceis, os
encontros de Jesus com a mulher pecadora, o publicano sentado na coletoria de impostos, o
endemoninhado, o confronto com Tomé ou a restauração de Pedro, são encontros do Senhor
comigo. De certa maneira, a leitura passa a ser também ‘sacramental’, porque posso e devo
sentir os seus efeitos graciosos em minha vida concreta.
Eu e meu coração prostituto somos confrontados e redimidos pelo Senhor. Eu e o meu coração
fraudulento somos perdoados e libertados pelo Senhor. Eu e o meu coração idolátrico e
escravo das forças do inferno somos purificados e santificados pelo Senhor. Eu e precisamente
eu e meu coração somos restaurados de nossa incredulidade e como Pedro, de nossa
desafeição pelo Senhor. A Lectio nos proporciona a deixar o texto ler a nossa alma e
esquadrinhar o nosso coração. Mas, essa maneira de ler a Bíblia exigirá uma resposta imediata
e concreta. Essa resposta é a oração. Por isso a Lectio é uma leitura orante, pois é preciso orar
com o texto lido e as suas implicações sobre o coração.
Então, a oração deixa de ser um movimento espontâneo, casual e muitas vezes sem
substância, sem uma ‘gramática’, e se torna um movimento provocado, uma resposta às
interpelações da Palavra de Deus. O texto mesmo nos fornece uma substância, uma
gramática, Palavras cujo fonema, o idioma é aquele mesmo ‘falado’ por Deus quando se
dirigiu a nós no texto divinamente inspirado. Nesse momento de oração, o coração já está
abastecido de significados espirituais, os afetos já estão aquecidos pelos toques ‘sacramentais’
da graça pela ação do Espírito Santo.
Esse momento de oração é vívido pois os afetos formam imagens em nossa mente que nos
levam ao gozo, ao contentamento, à vibrantes ações de graças e também a sofridos gemidos
de quebrantamento. Não somente a mente ora, mas coração, corpo e mente se entregam ao
momento e envolvem todo o nosso ser.
A Lectio Divina como disciplina espiritual envolve todos os aspectos centrais da formação
espiritual: leitura, meditação, oração, contemplação e como diziam os antigos, ‘praticação’,
uma atitude de mudança em face do gentil convite renovado em cada Lectio de se seguir o
Cordeiro por onde quer que Ele vá. Acostume-se à leitura orante e sapiencial das Escrituras.
Rev. Luiz Fernando Dos Santos é pastor na Igreja Presbiteriana Central de Itapira