Lectio Divina

Luiz Fernando dos Santos
23/1/2021
Espiritualidade
Devocional
História da Igreja

“Não deixe de falar as palavras deste Livro da Lei e de meditar nelas de dia e de noite, para que

você cumpra fielmente tudo o que nele está escrito. Só então os seus caminhos prosperarão e

você será bem sucedido” (Js 1.8).

“Meditarei nos teus preceitos e darei atenção às tuas veredas” (Sl 119.15).

Volta e meia algumas práticas seculares do cristianismo antigo retornam como moda no

variado mercado da espiritualidade. Meditação, oração do coração (hesequía), jejum, direção

ou mentoria espiritual e por aí vai.

O mesmo acontece com a Lectio Divina, uma maneira de ler as Escrituras herdada da tradição

monástica. Já na Regra de São Bento, elaborada no século V, então ainda dentro do período

patrístico, se fala desta modalidade de abordagem bíblica. A Lectio Divina não menospreza,

como pensam alguns, o texto em sua língua original, em seu sentido literário, histórico e

gramatical e menos ainda se apoia em interpretações alegóricas e subjetivas.

A Lectio é uma leitura sapiencial e orante da Palavra de Deus. É sapiencial porque o seu

intento primeiro é abastecer o coração da sabedoria das Escrituras. Para esse fim, claro, a

mente já está abastecida das regras exegéticas e hermenêuticas indispensáveis. Todavia, o que

se busca é envolver agora os afetos e a memória para que o coração se prenda à Palavra

recebida. Um dos elementos mais importantes na Lectio Divina é o ‘decorar’ o texto. Vale

ressaltar que a expressão ‘decorar’ vem do latim ‘de córdis” que quer dizer, do coração.

Decorar na Lectio divina é um processo que os primeiros praticantes desta maneira de ler a

Bíblia chamavam de ruminação. Sim, é preciso ruminar as Escrituras até extrair todo o sabor

e todo o nutriente espiritual do texto. O processo de ruminação ajuda a fixar o texto nas

paredes da memória afetiva, uma maneira de prender a Palavra nos meandros do coração.


Os afetos são mais despertados na Lectio Divina quando a leitura deixa de ser feita na ‘terceira

pessoa’, isto é, quando o leitor deixa de ser um mero expectador distante do texto bíblico. A

Lectio Divina nos obriga a ler o texto na primeira pessoa, o que significa, que o drama, o

enredo do texto deve encontrar pontos de contatos com a minha história pessoal. Eu devo

assumir dentro do processo a minha participação ativa e efetiva no texto como um dos

personagens que sofrem a ação redentora. Assim, para ficar em exemplos mais fáceis, os

encontros de Jesus com a mulher pecadora, o publicano sentado na coletoria de impostos, o

endemoninhado, o confronto com Tomé ou a restauração de Pedro, são encontros do Senhor

comigo. De certa maneira, a leitura passa a ser também ‘sacramental’, porque posso e devo

sentir os seus efeitos graciosos em minha vida concreta.

Eu e meu coração prostituto somos confrontados e redimidos pelo Senhor. Eu e o meu coração

fraudulento somos perdoados e libertados pelo Senhor. Eu e o meu coração idolátrico e

escravo das forças do inferno somos purificados e santificados pelo Senhor. Eu e precisamente

eu e meu coração somos restaurados de nossa incredulidade e como Pedro, de nossa

desafeição pelo Senhor. A Lectio nos proporciona a deixar o texto ler a nossa alma e

esquadrinhar o nosso coração. Mas, essa maneira de ler a Bíblia exigirá uma resposta imediata

e concreta. Essa resposta é a oração. Por isso a Lectio é uma leitura orante, pois é preciso orar

com o texto lido e as suas implicações sobre o coração.

Então, a oração deixa de ser um movimento espontâneo, casual e muitas vezes sem

substância, sem uma ‘gramática’, e se torna um movimento provocado, uma resposta às

interpelações da Palavra de Deus. O texto mesmo nos fornece uma substância, uma

gramática, Palavras cujo fonema, o idioma é aquele mesmo ‘falado’ por Deus quando se

dirigiu a nós no texto divinamente inspirado. Nesse momento de oração, o coração já está

abastecido de significados espirituais, os afetos já estão aquecidos pelos toques ‘sacramentais’

da graça pela ação do Espírito Santo.

Esse momento de oração é vívido pois os afetos formam imagens em nossa mente que nos

levam ao gozo, ao contentamento, à vibrantes ações de graças e também a sofridos gemidos

de quebrantamento. Não somente a mente ora, mas coração, corpo e mente se entregam ao

momento e envolvem todo o nosso ser.

A Lectio Divina como disciplina espiritual envolve todos os aspectos centrais da formação

espiritual: leitura, meditação, oração, contemplação e como diziam os antigos, ‘praticação’,

uma atitude de mudança em face do gentil convite renovado em cada Lectio de se seguir o

Cordeiro por onde quer que Ele vá. Acostume-se à leitura orante e sapiencial das Escrituras.


Rev. Luiz Fernando Dos Santos é pastor na Igreja Presbiteriana Central de Itapira