Coração de Servo: cultivando uma perspectiva contracultural

Tiago Abdalla T. Neto
8/1/2019
Hermenêutica

           Todo ser humano gosta de levar vantagem. Pode ser o sujeito na fila do banco que conhece alguém que trabalha ali e passa na frente dos demais, o amigo do político que consegue um lugarzinho como assessor dele, ou o profissional que bajula o chefe, a fim de garantir uma promoção no emprego. Diante de nossa tendência natural por levar vantagem nas interações com o mundo e buscar o benefício próprio, Jesus desafia seus discípulos a experimentarem um estilo de vida contracultural. Na realidade do reino de Deus, o foco é invertido, em que se deixa de concentrar no que trará vantagem, poder ou glória para si e, então, busca-se o bem do próximo, valorizando os interesses deste. O diálogo entre Jesus e seus discípulos, registrado em Marcos 10.41-45, nos apresenta essa perspectiva nada comum.

          Em meio à competitividade dos Doze, Jesus os chama, de forma paciente, para junto de si e transmite uma lição semelhante à que lhes ensinara há pouco. No capítulo 9, o Mestre usou um exemplo positivo, comparando os discípulos ao ser humano menos reconhecido na sociedade judaica: uma criança (Mc 9.36-37). Em Marcos 10.41-45, ele utiliza um exemplo negativo para falar da vida na comunidade do reino de Deus. O retrato que ilustra seu ensino é o dos governantes das nações ou “os grandes” entre eles. Marcos emprega verbos gregos que indicam “assenhorear-se” ou “subjugar” e “ter autoridade oficial sobre”. A Bíblia de Jerusalém oferece uma tradução interessante: “... aqueles que vemos governar as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam” (Mc 10.42). A ênfase está no poder usado em benefício próprio, para a glória pessoal, e no prejuízo daqueles que estão debaixo de tal poder.

        Em contraste com essa cena, comum para aqueles que faziam parte do Império Romano (e do nosso, também), Jesus instrui seus discípulos conforme a nova realidade do reino de Deus. Uma vez que o reino de Cristo não é deste mundo (Jo 18.36), a atitude esperada de seus seguidores é a busca do bem do outro, antes que o próprio bem. Em vez de subjugar os demais, o grande na comunidade de discípulos é aquele que serve como um mordomo ou garçom (Mc 10.43), posição não muito louvada pelos gregos, que valorizavam o desenvolvimento da personalidade própria.

          Jesus, porém, não se contenta em exemplificar a atitude altruísta de seus discípulos com a de um mordomo, mas vai além, e diz que o primeiro deveria ser escravo de todos (Mc 10.44). Um diakonos (“mordomo”) desfrutava de certa liberdade, mas um doulos (“escravo”) não tinha liberdade alguma, estava totalmente entregue a seu senhor para realizar a vontade dele. Portanto, o Mestre revela que a busca dos que fazem parte da nova comunidade não deve ser o poder, a glória ou o reconhecimento, mas o desejo sincero de amar os outros e servi-los, visando, antes de tudo, o benefício do próximo.

            É interessante notar que Jesus não apenas diz como seus discípulos deveriam ou não deveriam ser, mas, também, apresenta o fundamento para a atitude humilde. A base de nossa busca pelo serviço aos outros está na própria vida e exemplo de Jesus: “Pois o próprio Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.45). O próprio Deus se tornou homem como nós, mas não para ser servido, como era direito seu; antes, veio para nos servir e nos beneficiar, entregando sua vida para que pudéssemos alcançar a liberdade de nossa escravidão do pecado.

           Jesus é o exemplo supremo de entrega e serviço altruísta. Como nosso Senhor e Mestre, sua vida e seu sacrifício na cruz devem nos impulsionar a segui-lo, abrindo mão de direitos e interesses próprios, a fim de beneficiar o maior número de pessoas possível. É porque ele morreu em nosso lugar, garantindo a justificação de nossos pecados, que somos motivados a dar a nossa vida em favor de outros. Não servimos para alcançar algo da parte de Deus, mas sim porque Jesus já nos garantiu o favor e a aceitação dele em Seu sacrifício na cruz.

       A nova perspectiva da comunidade do reino tem de guiar a maneira que refletimos sobre o ministério e o desenvolvemos. Nosso trabalho ministerial não deve ter como alvo poder ou reconhecimento nem mesmo aquilo que nos trará mais ganhos financeiros. Precisamos servir com o olhar no Mestre, abrindo mão daquilo que nos é mais cômodo, deixando-nos gastar por aqueles a quem ministramos e sem nos preocuparmos com o retorno de fama que o ministério nos trará. Se desejamos que as pessoas conheçam e amem o Jesus que proclamamos e de quem testemunhamos, elas terão de ver em nós gente que encarna a “mesma atitude de Cristo Jesus”(Fp 2.5), que “se esvazia” e “assume a forma de servo”, disposta até mesmo à cruz, aquela condição de vergonha e dor, se necessário for, para cumprir a missão que o Pai nos confiou.