A igreja do saco de boxe e a memória dos primeiros mártires luteranos

Davi Chang Ribeiro Lin
30/1/2020
Devocional

Aproveitando um tempo de estudos teológicos na Bélgica, estive na exposição histórica “Lutero na Antuérpia, tolerância e repressão no século XVI”, na igreja católica Sint-Andrieskerk (Santo André) em Antuérpia. Seu estilo gótico no exterior e o barroco no interior foram brindados com... um saco de boxe no meio da igreja. Ao lado, uma mensagem mencionando a luta de Jacó com Deus. E acrescentaram: “lutar com alguém é melhor que ignorá-lo. Assim também com Deus”. Para uma Europa pós-cristã para quem Deus não é mais relevante, o saco de boxe é um apontamento contra a indiferença e um chamado a pelejar com um Deus que não entendemos e cujos caminhos às vezes questionamos. A ironia, porém, é que um saco de boxe nesta igreja remete ao passado de lutas (não com Deus), mas entre cristãos.

As ideias iniciais de Lutero chegaram à Antuérpia a partir do monastério Agostiniano. Jakob Probst (a quem Lutero carinhosamente chamava de “gordinho flamengo”) começou a falar abertamente contra as indulgências. Um tribunal da inquisição foi formado em Bruxelas. Em 1523, Hendrik Voes e Johann Esch, dois monges agostinianos, recusam a renunciar as ideias de Lutero e foram queimados vivos. O monastério agostiniano é então destruído e a igreja católica de Santo André erguida. Abalado pela morte destes amigos, Lutero compõe “uma nova canção levantamos”, música escrita em homenagem a estes que foram os primeiros mártires da Reforma Protestante. “Lançadas para os ventos negligentes / ou sobre o elenco das águas, / as cinzas dos mártires, assistidas, / se reunirão finalmente. / E daquela poeira dispersa, / ao nosso redor e ao exterior, / sondaremos uma semente abundante / de testemunhas para Deus.”

A visita me tocou: primeiramente, a coragem destes agostinianos em não negarem suas convicções luteranas. Como Estevão, estes primeiros mártires da Reforma foram publicamente humilhados, mas queimaram cantando suas canções. E de outro, encantou-me a abertura dos católicos Belgas do século XXI em contar esta história reconhecendo os protestantes como vítimas da violência. A maneira como se conta a história é um índice de sua humildade. A exposição teve uma parte intitulada “memória das vítimas” e o guia escrito buscava explicar aos visitantes as causas legítimas pelas quais os monges lutaram, contra a corrupção da igreja católica e comercialização das crenças, além de notas explicativas sobre os nuances das diferentes igrejas protestantes atuais. O foco da exposição foi nos mártires como pessoas sinceras que buscavam reforma e que proclamaram a palavra de Deus. Curiosamente, a exposição não citou a retaliação protestante de 1581, na qual Calvinistas destruíram parte desta igreja.

A exposição terminou dizendo que católicos e protestantes no hemisfério norte vivem atualmente os mesmos desafios: a indiferença e desinteresse quanto a igreja e uma atitude de negação de Deus. O saco de boxe convidava a lutar com Deus e não ignorá-lo. A luta não é contra carne ou sangue. É melhor lutar com Deus do que fazer de outro ser humano o seu saco de pancadas.

Aos sairmos da exposição, ouvimos um jovem europeu, branco e musculoso, dizendo a uma moça que não acreditava nas “besteiras de Deus e Jesus”. Aquilo era ultrapassado dizia ele. Mas gostava do padre que emprestava o salão paroquial para suas festas e às vezes se sentava na igreja para refletir. A criativa estratégia da igreja colocou o saco de boxe para o fortão em silêncio se perguntar sobre Deus.

Pergunto-me se a igreja evangélica brasileira sabe pelo que realmente lutar, e se o faz de maneira sábia. Talvez, se dependermos menos dos poderes político, jurídico e econômico, poderemos redescobrir mais profundamente o que significa encarnação e a força que nasce não no palácio, mas da manjedoura. Os irmãos da Europa tem, atualmente, pouca força e reconhecem que perderam a luta contra a secularização. Foram jogados na lona. O mesmo caminho tem sido traçado em um rápido processo de transformação social no Brasil. Mas isto, ao invés de uma retaliação bélica dos cristãos, precisa nos ensinar a responder estrategicamente a partir da fraqueza. Quem está na lona aprende a testemunhar criativamente e ouve melhor a dor do mundo.

Cristo, o vencedor ferido, continua abrindo portas para que seus filhos se posicionem sabiamente. Os cristãos serão sempre exilados que acharam na fraqueza de um Deus esmurrado e traspassado sua grande alegria e, na força do amor doador a esperança da ressurreição . Nas palavras do luterano Edmund Schlink, por causa da ação constante de Cristo, podemos olhar para o futuro da igreja cristã com esperança: “a igreja existe porque Jesus Cristo, o crucificado e ressurreto, age sempre nela de maneira nova... ela não é anterior a sua ação; e ela não existe por um instante sem sua ação”.

A visita ressaltou-me a importância de dar memória às vítimas da história e a olhar com esperança nosso futuro, mesmo em tempos turbulentos. Da Antuérpia a Auschwitz, quero contar e recontar a história do crucificado. Ele, que se tornou humano como eu e sofreu a ponto de derramar seu sangue, leva para o Pai nossas frágeis poeiras de cinzas, sementes que testemunham para Deus.