A glória de Deus na _kenosis_ de Cristo: observações exegéticas em Filipenses 2.5-11

Bernardo Cho
20/2/2019
Hermenêutica
Línguas Originais

O texto de Fp 2.5-11 é famoso por apresentar o escopo do evento-Cristo da maneira mais abrangente possível. Comentaristas têm notado que a passagem começa fazendo referência a Jesus na eternidade passada, oferece uma sinopse daquilo que ele realizou em seu ministério terreno e termina apontando para seu senhorio por toda a eternidade futura. Não é por acaso que Fp 2.5-11 é frequentemente mencionado como a expressão do entendimento paulino sobre a preexistência de Jesus. Mas ainda mais importante do que isso é o fato de que Fp 2.5-11 descreve de forma surpreendente como a glória de Deus se fez visível na pessoa de Jesus. Este ponto fica claro quando prestamos atenção ao texto grego. Abaixo ofereço uma tradução formal, nada funcional, para facilitar a nossa discussão:

2.5   Haja esta mentalidade em vocês, que estava também em Cristo Jesus,

2.6   que, existindo na forma de Deus,

               não considerou ser igual a Deus algo a que apegar-se,

2.7          mas esvaziou-se a si mesmo,

                      tomando a forma de servo,

                      tornando-se semelhante aos homens,

         e, sendo encontrado na condição de homem,

2.8          humilhou-se,

                      tornando-se obediente até a morte,

                            e morte de cruz!

2.9   Por essa razão, Deus o exaltou à mais alta posição e deu a ele o nome que é acima de todo nome

2.10  para que ao nome de Jesus todo joelhos e dobre nos céus, na terra e debaixo da terra,

2.11   e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.

A potência da passagem faz-se evidente na maneira como ela retrata a direção que Jesus trilha de eternidade a eternidade. A partir de sua condição pré-existente, Jesus trilha um longo caminho para baixo. Numa demonstração constante de autoesvaziamento – atitude chamada na tradição cristã de “kenosis de Cristo” –, aquele que desfrutava de prerrogativas divinas faz-se, primeiramente, semelhante aos seres humanos e, sendo achado em condição humana, esvazia-se mais uma vez, humilhando-se.[1] Em contraste com o que Adão havia deixado de fazer, Cristo se submete totalmente ao Pai até o ponto de experimentar a morte. E é na morte de Cristo que o caminho trilhado por ele diferencia-se ainda mais nitidamente do caminho trilhado por Adão: este havia morrido em decorrência de sua desobediência a Deus; aquele morreu em obediência ao Pai, para cumprir o Seu plano salvífico. Ademais, a descrição específica dada à morte de Jesus é chocante: “tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz!” Isso nos lembra de que a kenosis de Cristo culmina no mais sublime ato de autodoação, quando ele assume sobre si mesmo culpa que não lhe pertencia (cf. Rm 3.21-26).

Essa ênfase na direção descendente em que Jesus segue é importante, porque mostra que o seu autoesvaziamento, a sua kenosis, não foi somente um evento pontual na história, mas, sim, uma longa e persistente trajetória (cf. Hb 5.8). Num dos mais belos sermões que ouvi recentemente, o Reverendo Darrell Johnson acerta em cheio ao afirmar que o autoesvaziamento de Jesus não aconteceu num momento único de sua existência, mas ao longo de todo o caminho que ele percorreu de eternidade a eternidade. A kenosis de Cristo foi completa, do começo ao fim – primeiramente como Deus e, subsequentemente, como homem.

É igualmente crucial notar, no entanto, que nada disso representa a diminuição da natureza divina de Cristo. Se prestarmos atenção ao texto grego, notaremos que o verso 6 está em paralelo com o verso 7. Quer dizer, Jesus existia “na forma [en morphȩ̄] de Deus” (verso 6) e tomou “a forma [morphēn] de servo” (verso 7). E, quando Paulo diz, entre essas duas sentenças, que Jesus “esvaziou-se a si mesmo [heauton ekenōsen]”, o Apóstolo jamais dá a entender que tal autoesvaziamento desembocou no abandono da divindade. Paulo apenas afirma que, existindo na forma de Deus, Jesus esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo. Isso indica que, em Fp 2.5-11, Jesus assume, sim, a natureza de servo, sem, porém, abandonar a sua natureza divina. É por isso que o texto grego continua, dizendo que, uma vez que Jesus toma a forma de servo, ele torna-se “semelhante [en homoiōmati]” aos seres humanos, sendo achado “na condição [schēmati]” humana. Ou seja, Jesus abraça a experiência humana, mas a experiência humana não esgota a totalidade de quem ele é.[2]

A insistência no fato de que Cristo jamais abandonou o seu caráter divino em todo seu percurso de autoesvaziamento tem uma implicação bastante significativa, que afeta diretamente a vida da pessoa que confessa Jesus como Senhor. Por muito tempo, a afirmação inicial do verso 6 – “existindo na forma de Deus [en morphȩ̄ theou hyparchōn]” – tem confundido intérpretes de diferentes vertentes confessionais. E isso, por uma razão relativamente simples: ninguém tem absoluta certeza do exato sentido dessas palavras. Como assim Jesus existia “na forma” de Deus? Deus tem forma? Que forma é essa? Consequentemente, a maioria das traduções opta por interpretar a frase en morphȩ̄ theou hyparchōn como uma referência à natureza divina de Cristo, algo do tipo “sendo verdadeiramente Deus”. E essa leitura, de fato, é a mais plausível. O problema é que todas as versões em português que conheço tomam o particípio hyparchōn como tendo um aspecto concessivo nesta passagem. Assim, o advérbio “embora”, ausente no texto grego, é frequentemente adicionado à tradução de Fp 2.6, deixando implícito que a frase que vem logo em seguida – “não considerou ser igual a Deus algo a que apegar-se” – está em oposição à “forma” divina de Jesus na eternidade passada. (Note, por exemplo, como a NVI traduz o verso 6: “embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se”.) Isso daria margem para a conclusão de que Jesus, apesar de compartilhar da glória de Deus, "deixou de lado" essa glória ao esvaziar-se a si mesmo. Nesse sentido, a kenosis de Cristo teria sido a própria renúncia da glória de Deus Pai.

Há, porém, evidências bastante sugestivas na literatura próxima às cartas de Paulo sobre o sentido da expressão “na forma [en morphȩ̄]”, especialmente quando usada em relação a uma divindade. Larry Hurtado, Catedrático Emérito de Novo Testamento da Universidade de Edinburgh, nota que, no período relevante, quando se falava de alguém existindo “na forma” de um deus, tal expressão tinha força idiomática, conotando semelhança tanto com o status como também com as virtudes – ou o âmago do caráter – do referido deus (e.g., Fílon, De Virtutibus, 110­–114). À luz disso, a afirmação de que Jesus existia “na forma” de Deus não aponta apenas para os direitos divinos que ele desfrutava antes da criação, mas, principalmente, para a realidade de que o seu jeito de ser sempre foi idêntico ao jeito de ser de Deus Pai. Existir “na forma” do Pai é pensar, sentir, decidir e agir conforme o caráter do Pai. Podemos dizer a partir disso que o autoesvaziamento de Jesus, longe de ser o abandono da identidade que lhe pertencia na eternidade passada, concretiza-se em seu ato de abraçar a forma de servo, tomando sobre si a condição humana e incluindo a humanidade redimida na eternidade futura.

Isso faz muita diferença. O fato de que Jesus “não considerou ser igual a Deus algo a que apegar-se” não está em conflito algum com o seu caráter divino. E a escolha da expressão “não considerou [ouch hēgēsato]” dá ainda mais sustentação para essa interpretação, já que o verbo grego hēgeomai carrega a ideia de "chegar a uma conclusão lógica", "compreender". Segundo Paulo, Cristo, sendo alguém perfeitamente identificado com os interesses do Pai – “existindo na forma de Deus” –, concluiu que ser igual a Deus era não apegar-se a essa prerrogativa para a sua própria vantagem, mas, pelo contrário, esvaziar-se. Existir “na forma” de Deus, ter o caráter de Deus e viver segundo o Seu jeito de ser, significava cumprir o Seu plano salvífico até o fim. Ao descer até o mais profundo abismo para doar a sua vida, portanto, Cristo não “abriu mão” da glória do Pai, como dizem algumas canções contemporâneas que cantamos em nossas reuniões dominicais. Na verdade, Jesus revelou quem o Pai de fato é. E é altamente relevante para a nossa discussão que encontramos praticamente o mesmo tema no prólogo do Evangelho segundo João, fazendo ecos da revelação de YHWH nos eventos narrados no livro de Êxodo: “Aquele que é a Palavra tornou-se carne e tabernaculou entre nós. Contemplamos a sua glória, glória como do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. Ninguém jamais viu a Deus, mas o Deus Unigênito, que estava no seio do Pai, este O tornou conhecido” (Jo 1.14, 18). É precisamente na kenosis de Cristo, não a despeito dela, portanto, que enxergamos a glória do Deus Unigênito, que Se entregou para resgatar a humanidade da morte e expressar o amor do Pai (cf. Rm 5.8).

É por isso que Paulo coloca a exaltação de Jesus numa relação de causa e efeito com a sua humilhação: “Por essa razão [dio], Deus o exaltou à mais alta posição e deu a ele o nome que é acima de todo nome, para que ao nome de Jesus todo joelho se dobre nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus Pai.” Sim, porque Jesus expressou a forma de Deus perfeitamente em seu autoesvaziamento, somente ele pode ser exaltado de volta à destra do Pai.

Desta maneira, o evangelho nos chama a trilhar o mesmo percurso, pela graça de Deus que opera em nós por meio de Seu Espírito (cf. Fp 2.12-13). E a direção desse percurso é a direção que o próprio Filho de Deus trilhou – para nos resgatar de nossa condição caída e nos ensinar o significado de ser plenamente humanos, à imagem de Deus. É relevante, portanto, que Paulo diga tudo isso com nenhuma outra finalidade senão a de exortar os crentes em Filipos a imitarem a Cristo: “Haja esta mentalidade em vocês, que estava também em Cristo Jesus”. Uma vez que Cristo se esvaziou porque ele entendia o Pai como ninguém, os discípulos de Jesus herdam a vocação de demonstrar esse entendimento por meio de um estilo de vida que se assemelha ao de Cristo. Pois o conhecimento da glória de Deus só se faz verdadeiramente inteligível, quando articulado por uma vida que percorre o caminho desbravado por aquele que se submeteu perfeitamente à vontade do Pai e foi obediente até o fim.

[1] Darrell Johnson oferece uma leitura semelhante.

[2] Parafraseando Johnson.