A Escatologia paulina em diálogo com a missão na cidade

Marcos Amado
11/10/2021
Missões e Evangelismo

Quem já não ouviu falar sobre o “fim do mundo”? Esse tema faz parte do imaginário popular há séculos. Já em meados do segundo século 2 d.C., na Ásia Menor, um homem chamado Montano declarou que a Nova Jerusalém estava prestes a descer dos céus, o que causou uma onda de fervor religioso em grande parte do Império Romano da época. Mais recentemente, a famosa série de livros Deixados para trás, de Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins, cujo apelo central é uma representação ficcional daquilo que os autores entendem pelo conceito cristão de “arrebatamento” (1Ts 4.13-18), vendeu mais de 80 milhões de exemplares em todo o mundo.[1]

Não é difícil entender por que a escatologia, a doutrina sobre as últimas coisas (que, convém já esclarecer, inclui dois aspectos distintos, porém inseparáveis: o destino individual e o destino de toda a história), desperta tanto interesse. O ser humano, não importa qual seja seu arcabouço étnico-cultural, anseia saber o que lhe acontecerá após a morte e se o mundo terá um fim. Os cristãos, em geral, têm a mesma inquietação quanto ao próprio destino e quanto ao destino da história. Essa pode ser uma das razões que levaram o apóstolo Paulo a dedicar tamanha atenção aos temas escatológicos. A cosmovisão apocalíptica é central no pensamento paulino. Em muitas de suas cartas – sobretudo em Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses e 1 Tessalonicenses –, o que está por vir tem lugar de destaque, seja pela centralidade que a escatologia ocupa na fé cristã, seja pelas heresias que ameaçavam a igreja primitiva, como o gnosticismo e sua visão de vida, morte, salvação e vida após a morte.

É notável em Atos e em suas epístolas que Paulo tinha convicção de que seu chamado (ou missão) era anunciar as boas-novas aos gentios (Gl 1.11-17), chamado esse que ele cumpriu a um alto custo pessoal (1Co 4.11-13; 2Co 4.7-12), muitas vezes tendo como pano de fundo suas convicções escatológicas.

Então, considerando que a vida e o ensino de Paulo mostraram o papel-chave da escatologia em sua missão, quais são os fundamentos dessa visão? Há algo no entendimento escatológico de Paulo que é relevante para a missão em um mundo urbanizado? É a essas questões que pretendemos, ainda que de forma breve, responder neste artigo.

 

 

 

Os fundamentos da escatologia de Paulo

Em diversas passagens dos evangelhos, vemos Jesus falando sobre “este mundo” e sobre o “mundo por vir” ou o “mundo futuro” (Mt 12.32; Mc 10.30; Lc 18.30; 20.34). Já o apóstolo Paulo, em suas cartas, diz que “vivemos no fim dos tempos” (1Co 10.11), que Deus enviou seu Filho Jesus “quando chegou o tempo certo” (Gl 4.4), e que esse mesmo Jesus está acima de qualquer poder “não apenas neste mundo, mas também no futuro” (Ef 1.21).

À primeira vista, os que não estão familiarizados com o Antigo Testamento podem pensar que os conceitos por trás de tais expressões são característicos apenas da era cristã. No entanto, uma breve pesquisa sobre profecias messiânicas e escatológicas nas Escrituras hebraicas nos mostra que Jesus e Paulo estavam, na verdade, mencionando conceitos com os quais os judeus tinham grande familiaridade, visto que o Antigo Testamento fala repetidas vezes sobre:

  • reino de Deus (ou governo divino);
  • as bênçãos dos gentios por meio da promessa feita a Abraão (Gn 12.1-3);
  • a vinda do Messiaas (Is 53; Ez 12.10);
  • a nova aliança (Ez 11.18-10);
  • a ressurreição do corpo (Dn 12.1-4);
  • novos céus e nova terra (Is 65.17-25);
  • julgamento (Dn 7.22; Jl 3.2);
  • Deus reinado de Sião (Is 24.23; 60.14);
  • derramamento do Espírito (Jl 2.28-32);
  • os gentios vindo a Sião (Is 60);

além de outros temas estatológicos proeminentes.

É importante salientar também que, durante o período intertestamentário, os judeus piedosos acreditavam fortemente em um mundo por vir e na ressurreição do corpo (como é possível ver no livro deuterocanônico de 2 Macabeus, sobretudo no capítulo 7).

Na verdade, foi durante esse que período que ocorreu uma importante mudança no entendimento da Lei e de sua relação com os eventos escatológicos. “A importância da Lei obscurece o conceito de aliança”, escreveu sobre esse período o teólogo George Eldon Ladd. Nessa perspectiva, “a obediência à Lei trará até mesmo o Reino de Deus, e mudará o curso do mundo amaldiçoado, trazendo vitória”.[2]

Constatados os paralelos entre os temas escatológicos do Antigo e do Novo Testamentos, não é difícil concluir que, sendo Paulo “israelita de nascimento, da tribo de Benjamim, um verdadeiro hebreu […] membro dos fariseus, extremamente obediente à lei judaica” (Fp 3.5), sua orientação escatológica se basearia firmemente no Antigo Testamento, bem como nos desenvolvimentos teológicos que ocorreram durante o período intertestamentário. Ainda sobre esse assunto, Ladd afirma:

Com base nos escritos de Paulo como cristão, podemos dizer claramente que o judeu Saulo compartilhava da esperança judaica da vinda do Messias que, de forma definitiva, destruiria seus inimigos, redimiria Israel e estabeleceria o reino de Deus; a partir dessa crença, proveniente dos profetas do Antigo Testamento, Paulo desenvolve a estrutura básica de seu pensamento como cristão. Suas cartas lançam mão de termos peculiares da literatura apocalíptica e rabínica: refere-se a duas eras, olam hazzeh (era presente) e olam habba (era por vir).[3]

Larry Kreitzer, por sua vez, salienta sete pontos centrais na escatologia de Paulo, a saber:

  1. A messianidade de Jesus de Nazaré (1Co 8.6; Fp 2.11).
  2. A realidade de uma era escatológica (1Co 7.31, 10.11; 2Co 5.17; Gl 4.4; Ef 1.7-10).
  3. A ressurreição de Jesus dentre os mortos (Rm 1.3-4; 1Co 15).
  4. O esperado dia do Senhor e o julgamento final (1Ts 4.13-18; 1Co 15.23-24; 2Co 5.6-10).
  5. A missão gentílica e o destino do povo judeu ( Rm 9-11; Gl 1.11-17).
  6. O dom escatológico do Espírito (Rm 8.2,10; 1Co 15.45; 2Co 3.6).
  7. A transformação do cosmo, incluindo a transformação do corpo físico dos crentes em um corpo glorioso (Rm 8.19-23; Fp 3.20-21; Cl 1.15-20).[4]

 

Todavia, embora tais temas escatológicos de Paulo tenham o Antigo Testamento como importante fundamento, a experiência no caminho de Damasco fez com que ele os enxergasse sob uma nova luz. Aquele a quem ele perseguia, Jesus de Nazaré, era, de fato, o Messias mencionado nas Escrituras hebraicas. E isso só poderia significar uma verdade extremamente significativa: a presença da era escatológica se tornara uma realidade. Para Paulo (assim como para Jesus e para os outros apóstolos), a era por vir mencionada no Antigo Testamento havia chegado. Os cristãos já podiam experimentar, pelo menos em parte, o cumprimento das profecias.

É evidente que algumas das profecias – a ressurreição do corpo, a criação de novos céus e nova terra, a herança da vida eterna, entre outras – não se cumprirão até a parousia, o retorno de Cristo. Até aquele dia, a morte não será completamente vencida. Mas é verdade também que, por causa da morte de Cristo, “o homem justificado já está na era vindoura do juízo escatológico, absolvido de toda culpa”, “liberto da presente era maligna” e “transferido do domínio das trevas”, já conhecendo, agora, “a vida do Reino de Cristo”.[5] Isto é, ele se encontra na dimensão do “já/ainda não da escatologia do Novo Testamento”.[6]

 

A relevância da orientação escatológica de Paulo para a missão

Alguns círculos missiológicos atuais dispendem esforços consideráveis na elaboração de estratégias que ajudariam os cristãos a cumprir a Grande Comissão que Jesus deixou a seus discípulos (Mt 28.18-20). Abordagens que enfocam principalmente grupos étnicos (ou grupos culturais homogêneos) não alcançados, comuns nas últimas décadas, são exemplos claros de como os cristãos vêm tentando acelerar a parousia. Uma interpretação particular de Mateus 24.14 (“As boas-novas a respeito do reino serão anunciadas em todo o mundo, para que todas as nações as ouçam; então virá o fim”) serve como combustível para tais estratégias. A ideia é que, quanto mais rapidamente anunciarmos o evangelho entre todos os povos da terra, tanto mais rapidamente a segunda vinda de Cristo ocorrerá.

Nessa ânsia de acelerar a volta de Cristo, sempre se deu grande ênfase a ferramentas antropológicas e sociológicas. Contudo, em um mundo globalizado, cada vez mais caracterizado por um processo irreversível de urbanização, grupos étnicos tribais já não são tão herméticos quanto há algumas décadas. Isso deve levar as missões cristãs a reavaliar seus pressupostos e estratégias. Além disso, devemos nos perguntar se alguns aspectos bíblicos essenciais não acabaram sendo “deixados para trás”, sobretudo no que diz respeito à visão escatológica de Paulo e sua relevância para a missão. Tais aspectos vão muito além do mero cumprimento de uma tarefa; na verdade, devem fundamentar o próprio conceito de missão.

Envolvimento social

O apóstolo Paulo tinha evidente preocupação em ver os gentios sendo alcançados pelo evangelho no prazo mais curto possível, principalmente aqueles que viviam nas grandes cidades do Império Romano. É por isso, talvez, que ele afirmou não querer atuar em lugares onde Cristo já havia sido anunciado (Rm 15.20-21).

Todavia, a urgência de sua atividade missionária não poderia se dar às custas de concessões à mensagem do evangelho. Sua ênfase estava sobre a cidadania celestial dos cristãos (Fp 3.20-21). “Em virtude de sua relação com o Cristo exaltado”, escreveu A. T. Lincoln, “os crentes devem ser governados pela vida da comunidade celestial, refletindo o padrão de seu Senhor conforme cumprem seu papel.”[7] Portanto, além do desejo de ver todos os grupos étnicos alcançados pelo evangelho,[8] cristãos e missiólogos devem ter em mente que uma resposta natural ao fato de nossa cidadania estar no céu é viver em conformidade com isso.

Podemos então dizer que Paulo, em seu ensino moral, propõe que nós, cristãos, sejamos conscientes de que vivemos entre o já e o ainda não. Ainda não estamos no novo céu e na nova terra, mas, enquanto não chegamos lá, vivemos propagando, por onde passamos, os valores do reino de Deus. Portanto, diz o apóstolo: “Levem uma vida pura e inculpável como filhos de Deus, brilhando como luzes resplandecentes num mundo cheio de gente corrompida e perversa” (Fp 2.15), e “Não imitem o comportamento e os costumes deste mundo” (Rm 12.2). Nesse sentido, a missão, mais que a expectativa de finalizar uma tarefa ou obter resultados mensuráveis por números, deve incluir em sua estratégia um envolvimento profundo com a sociedade e, consequentemente, com a cidade. Refiro-me, sem dúvida, à proclamação clara do evangelho, mas também à contestação das estruturas de poder do mundo em favor dos necessitados e à procura por respostas para a mordomia responsável da criação.

Em outras palavras, cabe aos cristãos “constituir uma comunidade de esperança que geme e trabalha pela redenção de todo o mundo. Eles não podem se orgulhar de uma ‘escatologia que já se cumpriu’ para si próprios em detrimento do mundo. Igreja e mundo estão unidos em um laço de solidariedade”.[9]

 

Dinâmica social

No pensamento escatológico de Paulo, com o advento do Messias, um dos aspectos já vividos pelos cristãos é este: “Não há mais judeu nem gentio, escravo nem livre, homem nem mulher, pois todos vocês são um em Cristo Jesus” (Gl 3.28). Para Larry Kreitzer, nessa passagem Paulo está afirmando que a “unidade em Cristo transcende” barreiras éticas, econômicas e de gênero. Trata-se, assim, de “uma declaração, um estatuto sobre como deveriam ser conduzidas as relações humanas no presente tempo”.[10] O impacto dessa verdade para a missão, e sobretudo para a missão nas cidades, é muito claro: a estratégia missiológica deve levar em conta que o ideal almejado é que as pessoas não sofram nem sejam oprimidas por causa de gênero, etnia ou condição econômica. Essa afirmação foi tão revolucionária na época de Paulo quanto é hoje, principalmente quando consideramos a situação de algumas áreas urbanas mais necessitadas de nosso mundo.

 

Objetivos finais da missão

Nos meios cristãos, fala-se muito em “ganhar almas” e “plantar igrejas”. É fato que esses são pontos importantes e complexos, que, por questões de espaço, aqui só poderão ser tratados brevemente.

Ao olharmos para as Escrituras, não resta dúvida que Jesus ordenou a seus discípulos que proclamassem o evangelho a todo o mundo. Além disso, a igreja deve desempenhar papel importante nesta era, na convicção de que “as forças da morte não a conquistarão” (Mt 16.18). O próprio Paulo concentrou boa parte de seu esforço missionário em estabelecer novas congregações. Contudo, quando olhamos da perspectiva escatológica de Paulo, fica claro que “ganhar almas” e “plantar de igrejas” são apenas parte do plano de Deus. O objetivo final é a redenção da humanidade e do cosmo, a fim de apresentá-los todos “maduros em Cristo” (Cl 1.28). “Mesmo sendo muito importante, a igreja, para Paulo, não é o objetivo final da missão”, escreveu o missiologista David J. Bosch. “A vida e o trabalho da comunidade cristão estão intimamente ligados ao plano cósmico-histórico de Deus para a redenção do mundo. Em Cristo, Deus reconciliou não apenas a igreja, mas o mundo, consigo mesmo (2Co 5.19)”.[11]

Escrevendo para Timóteo, Paulo diz que toda a Escritura é “útil para nos ensinar o que é verdadeiro” (2Tm 3.16). Isso significa que cristãos, ao proclamarem as boas-novas, deveriam também ensinar a respeito da esperança escatológica cristã. Será que nós, pastores e educadores cristãos dos países ocidentais, estamos incluindo a esperança escatológica como um dos temas centrais quando proclamamos o evangelho? Em um mundo onde sofrimento e vicissitudes imperam na vida de milhões de pessoas, a expectativa de novos céus e nova terra, a glorificação do corpo, a redenção da criação e tantos outros aspectos de uma mensagem escatológica podem desempenhar papel fundamental na difusão de esperança e de um novo sentido para a vida.

Durante seu ministério terreno, Jesus proclamou que o reino de Deus estava próximo (Mc 1.15; Lc 10.9; 19.11). No início de seu ministério, ele lê na sinagoga um trecho extraído do profeta Isaías:

O Espírito do Senhor está sobre mim,pois ele me ungiu para trazer as boas–novas aos pobres.

Ele me enviou para anunciar que os cativos serão soltos,

os cegos verão, os oprimidos serão libertos, e que é chegado o tempo do favor do Senhor. (Lucas 4.18-19; ver Isaías 61.1-2)

Ali Jesus estava fazendo a “sensacional alegação de que aquilo por que as pessoas ansiavam como algo futuro era uma realidade presente. […] O escatológico estava invadindo a história. Deus veio para reinar”.[12] Após a ressurreição e a ascensão de Jesus, o apóstolo Pedro prontamente entendeu isso ao afirmar que o evento no dia de Pentecostes foi o cumprimento da profecia de Joel que aconteceria “nos últimos dias” (At 2.17). Também o apóstolo Paulo, por meio de seu encontro com o Cristo ressurreto, entendeu que o início dos “últimos dias” já havia começado, e isso moldou por completo sua teologia, vida e ministério.

Consequentemente, os cristãos hoje deveriam também ser influenciados pela tensão do “já/ainda não” da escatologia de Paulo, e participar com todo coração da extensão do reino de Deus em todo mundo, com todas as suas implicações.

 

 

Observação:

Esse artigo é um dos capítulos do livro Missão Urbana (vários autores, organizado por Estevan Kirschner e Bernardo Cho), livro que o Seminário Teológico Servo de Cristo publicou pela Editora Mundo Cristão na celebração de seus 30 anos em outubro de 2020. Disponível nas versões impressa e digital