A antropologia e a missão urbana

André Souza
9/4/2019
Missões e Evangelismo

Estranhando o familiar - Primeiros passos para o conhecimento intracultural

Lembro-me como se fosse hoje! Estava lecionando antropologia cultural em uma universidade de São Paulo. Na minha frente, mesa a mesa, estavam dois jovens: um homem e uma mulher. A moça era cristã evangélica e o jovem não revelara seu segmento religioso, mas se mostrava aberto a ouvir sobre o evangelho.

Em certo momento da conversa entre eles a jovem diz ao rapaz: - “...as pessoas do mundo...”. Imediatamente o rapaz segurou gentilmente em seu antebraço e disse: - “Só um minuto! Desculpe,eu não entendi. Como assim as pessoas do mundo?” Ela parou uma fluente conversa e gastou um tempo significativo tentando explicar quem eram as “pessoas do mundo”.

Fiquei imaginando o que deve ter se passado na cabeça daquele rapaz. “Como assim: “pessoas do mundo?”. Existem pessoas que não são do mundo? Será que os evangélicos vieram de outro planeta?”

Definitivamente, as pessoas fora do ambiente evangélico não sabem o que significam: “as pessoas do mundo.” Estamos tão acostumados com nossa cultura religiosa e em geral com a própria cultura das cidades onde vivemos que não percebemos que as respostas que estamos oferecendo não se referem necessariamente as perguntas das quais as pessoas estão fazendo. Nossa linguagem está tão engessada que se torna uma barreira para que outras pessoas compreendam o Evangelho a partir de suas próprias realidades.

Ao meu ver um modo que temos para mudarmos esta realidade é intencionalmente estranharmos aquilo que nos é familiar.

Não tenho a pretensão de ser original nem acadêmico. Sou antropólogo é verdade, mas também sou pastor e missionário e me esforço muito para ser também um pregador que tenta disponibilizar para os meus colegas pastores, missionários e aos cristãos em geral reflexões que nos ajudem na comunicação do Evangelho de modo fiel e relevante. É tão verdade o que escrevi acima que acabo de parafrasear, na primeira linha, Lesslie Newbigin (2016, p. 11).

Neste texto quero me deter aos problemas e as dificuldades, principalmente que pastores,líderes e cristãos em geral têm em estranhar o próprio espaço em que ocupam na cidade e suscitar o debate que envolva soluções práticas de ação para o conhecimento intracultural (1), isto é, da própria cultura e a aplicação fiel do Evangelho e inteligível para cultura. Para isso, precisamos conhecer bem o Evangelho e bem a cultura tendo sempre como pressuposto que: O Evangelho sempre responde para a cultura e nunca o contrário, pois o Evangelho mostra como o mundo deveria ser (conectado a Deus) e a cultura mostra como o mundo está (desconectado de Deus). Nosso desafio, portanto, é descobrir quais perguntas são relevantes no contexto cultural de nossas cidades para que possamos ser o mais assertivo possível, segundo o Evangelho, em nossas respostas. Assim, fielmente ao evangelho e relevante a cultura proporcionarmos relacionamentos e ambientes que apontem o caminho da reconexão das pessoas de nossa cidade com Deus, com o próximo, com o mundo e consigo mesmas, todos estes afetados pela queda.

Parto do pressuposto que a maioria de nós conhece bem o Evangelho, mas nos falta por outro lado uma leitura mais objetiva da cultura. Para que isto seja possível o primeiro passo prático que precisamos dar nesta caminhada é intencionalmente transformar aquilo que é familiar em algo estranho. Este é um exercício fundamental se quisermos conhecer melhor a cultura de nossa cidade.

Um dos temas recorrentes da antropologia urbana referida em grande parte de sua literatura é o estranhamento do familiar, isto quando se trata do pesquisador intracultural.

Um dos maiores problemas enfrentados pelos pastores e missionários, não são necessariamente o encontro com a nova cultura e pessoas distintas ou até mesmo radicalmente distintas da sua própria. Estranhar o “outro”, a sociedade e a cultura diferente é complexo, mas está posto claramente sobre mesa, isto é, o estranho é estranho – embora, gradativamente tende a se tornar familiar, quando se tratadas relações transculturais. Nossa dificuldade está em quando olhamos para dentro de nossa própria cultura. Segundo o antropólogo A. Geertz, estranhar a si mesmo constitui-se em um grande desafio para o pesquisador. Ele aconselhava que antes de estudarem outros povos e culturas pudessem conhecer melhores a si mesmos e suas próprias culturas. Para isso, é necessário, nas palavras de Da Matta (1974, p. 4), transformar o familiar em exótico. É necessário atenção neste momento. “O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não é necessariamente conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto, conhecido”. (VELHO, 2013, p. 72).

O fato de morar muitos anos em um mesmo lugar pode ser uma grande armadilha na intenção de conhecer melhor a cidade. Quando olho por cima do muro de minha casa, posso perceber o fluxo de carros, de pessoas que se reúnem numa praça, que frequentam um café, posso ver trabalhadores consertando o asfalto ou pedreiros construindo um prédio. Posso perceber diferentes grupos sociais dos mais pobres aos mais ricos e tudo isso me é bastante familiar, porém, não os conheço, com exceção de alguns, qual a história de cada um e como foram formados; não sei onde a maioria mora e como se organizam geograficamente, não sei como se identificam e nem sei quais são os seus valores. Posso até fazer alguma ideia, mas isto está num campo mais intuitivo e subjetivo do que intencional e objetivo. Fazemos parte de uma sociedade, mas será que na pluralidade, principalmente dos grandes centros urbanos, nós fizemos parte da mesma cultura? Creio que não. A resposta esta na retórica da própria pergunta. Se é plural, dificilmente será igual.

Na linguagem de Zigmund Bauman cidades tem, por exemplo, seus valores cada vez mais líquidos, próprios da pós modernidade.Cidades são fluídas, estão em constante e rápida transformação. Por exemplo, uma pesquisa realizada hoje em dia deve ser reavaliada em no máximo cinco anos ou menos, dada a velocidade e a transformação da cidade. Podemos ter uma ideia geral sobre uma cidade qualquer, mas o que realmente nos importa para a comunicação fiel do Evangelho são os dados específicos. Para isso precisamos de aplicação metodológica que me deterei num próximo artigo tratando somente o tema da metodologia de uma antropologia aplicada as ações missionais em ambientes urbanos.

Neste artigo quis apenas me deter na prática do exercício de estranhar o familiar. Precisamos afinar a capacidade de ver e ouvir o outro. Parafraseando Geertz (1973, p. 452), é como se estivéssemos olhando por cima dos ombros daqueles que vivem na cidade. Assim, podemos perceber qual a pergunta que  realmente importa ser respondida. Estranhar o familiar nos torna mais sensíveis, mais compassivos, e mais compreensivos em relação aos quais estamos olhando por sobre os ombros. Só assim podemos construir novas estratégias que sejam mais objetivas sobre as pessoas, a cultura, a história e a geografia de nossa cidade.

Ver e ouvir deveriam ser as duas primeiras atitudes de qualquer cristão que queira ser relevante em sua cultura e fiel ao Evangelho. Estranhar o familiar é um passo fundamental para minimizaríamos o risco eminente que sofremos em responder perguntas com uma linguagem desconecta e as quais a sociedade onde vivemos não está fazendo. Cidades, mesmo as vizinhas, são diferentes uma das outras, portanto generalizações sobre a forma de comunicar do evangelho, são sempre perigosas e correm o risco de serem descontextualizadas da realidade, mas este é assunto para um próximo artigo. Nos importa, neste momento, apenas encorajar e iniciar os primeiros passos dessa caminhada de conhecimento de nossa cidade partindo intencionalmente do estranhamento daquilo que é familiar. Em outras palavras, precisamos adotar, semelhante aos missionários em contextos transculturais, uma postura de estranhamento intencional, como se quase tudo ao nosso redor fosse desconhecido. Este é o primeiro passo para compreender melhor a nossa própria cultura.

Vejo pelo menos três maneiras de colocar este estranhamento em prática.

Em primeiro lugar precisamos relativizar nossa cultura. Vejam bem, isto não tem qualquer relação com relativizar o Evangelho. Relativizar a cultura é um caminho desconfortável, pois já estamos, em certo sentido, acostumados com o contexto que nos cerca. Mas lembrem-se: o que é familiar não é necessariamente conhecido. Relativizar a cultura é um campo mais metodológico. Tratamos aqui da intencionalidade e do exercício que coopere no modo de como posso aprender mais sobre mim mesmo, os outros e o contexto intracultural.

Em segundo lugar, precisamos desenvolver também um campo mais afetivo, isto é, talvez tenhamos cada vez mais excelentes teólogos, mas poucos pastores. Jesus, ao contrário de muitos de nós, que vivemos entrincheirados em escritórios e templos, andava nomeio da multidão, criava empatia e se compadecia (Mt. 9. 35 - 38). Experimente pegar um metrô, andar em um ônibus ou até mesmo a pé pela sua cidade ou bairro. Mas, não coloque seu rosto enterrado no celular como um avestruz que o enterra no chão. Olhe para o rosto de cada uma das pessoas, converse com todos os que você puder, ouça mais do que fale, mas quando falar use uma linguagem compreensiva e perceberá que até o seu sermão mudará. Suas respostas brotarão do Evangelho diretamente e assertivamente ao encontro de corações necessitados.Tenha compaixão! Caminhe entre as pessoas. Sobre tudo, caminhe com as pessoas.Perceba qual é o sofrimento. Perceba qual é a pergunta antes de responder sobre algo que não estão lhe perguntando.

Em terceiro e último lugar, precisamos a partir da relativização da cultura e imbuídos de compaixão avaliar e agir. Relativização da cultura e compaixão são ótimos, mas não são tudo. Estes dois devem vir acompanhados por ações. Jesus sentiu compaixão, mas também avaliou o contexto e concluiu que havia uma grande multidão; que elas estavam aflitas; e,que os trabalhadores eram poucos. Percebam que Mt. 9. 35 – 38 apresenta Jesus passando por um processo de sentimento (compaixão); de reflexão e avaliação (ideia); e, finalmente de ação (comprometimento com a missão). Ele instrumentalizou seus discípulos (Mt.10) e continuou seu ministério onde estava (Mt. 11.1).

Finalmente, (re)conhecer o contexto intracultural implica em certa relativização da cultura como exercício para transformar o familiar em exótico. Esta tarefa é fundamental se quisermos comunicar o Evangelho de modo fiel e relevante. Seus desdobramentos, porém, vão além disso, pois geram mais compaixão, mais estratégias e mais comprometimento com a missão.

BIBLIOGRAFIA

Da Matta, R. O oficio do etnólogo ou como ter “anthropological blues”, in publicações do programa de pós graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, 1974.

GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

NEWBIGIN, L. O evangelho em uma sociedade pluralista. Viçosa – MG: Ultimato 2016

VELHO, G. Um antropólogo na cidade:ensaios de antropologia urbana. Rio de Janeiro: Zahar, 2013

(1) Usarei a categoria "Intracultural" para me referir ao ator (indivíduo) socio-cultural que está inserido em sua própria cultura.