Olhar sistêmico sobre a família

Isabelle Ludovico
17/9/2018
Pais e Filhos

O século XX nasceu sob a influência do pensamento cartesiano, reducionista e linear, que introduziu a prática analítica em todas as ciências, inclusive na psicanálise. O surgimento da Teoria da Relatividade (Einstein) iniciou uma revolução que atingiu todas as áreas do saber. A psicologia também evoluiu passando do paradigma mecanicista para o sistêmico. A Terapia Sistêmica se desenvolveu através da percepção que grande parte dos conflitos trazidos pelos pacientes tem origem nas relações familiares. Ampliou-se o foco psicanalítico essencialmente intrapsíquico para permitir uma abordagem inter relacional. A Terapia Familiar Sistêmica inspirou-se na Teoria Geral dos Sistemas que apontou características comuns a todos os sistemas vivos e propiciou uma visão do mundo como um conjunto de sistemas interdependentes. Elaborada por Ludwig Von Bertalanffy em 1975, a TGS afirma que todo sistema vivo é essencialmente um sistema dinâmico e aberto para se adaptar às mudanças internas e externas. Ele funciona com uma organização hierárquica. Koestler, em 1981, dá a denominação de holon para a unidade básica do sistema que apresenta um paradoxo: quanto maior sua integração no sistema, maior sua autonomia em relação ao mesmo.

Da Cibernética, conceituada por Norbert Wiener em 1948, a Sistêmica assimilou o conceito de “feedback”pontuando que qualquer conduta de um dos membros irá gerar uma resposta dos outros membros que pode ser positiva ou negativa. Vem dela também a noção de homeostase, ou seja, a busca de equilibro do sistema através da manutenção de sua organização. Porém, segundo Fritjof Capra, a diferença mais elementar entre máquinas e organismos é que os últimos crescem enquanto os primeiros são construídos. As máquinas funcionam de acordo com cadeias lineares de causa e efeito enquanto os organismos são controlados por relações dinâmicas entre suas partes. Todo ser vivo é como uma pirâmide invertida. Na base estão as heranças pré-definidas. Desta base cresce, para o alto, uma organização de níveis hierarquicamente superiores, resultado de vivências e aprendizagens adquiridas nas trocas com outros sistemas. Todo sistema é movido por duas funções paradoxais: a função de abertura promove o crescimento e a renovação das forças do sistema enquanto a função de fechamento garante sua manutenção e coesão.Assim ele obedece a um processo dinâmico que se dá através de dois movimentos contraditórios: homeostase e transformação. Sua saúde e vitalidade dependem de sua capacidade de exercer estes movimentos de forma equilibrada. Os sistemas mais rígidos resistem às mudanças que, portanto, são necessárias para garantir a diferenciação e integração dos indivíduos e do sistema.

A Teoria da Comunicação, desenvolvida por Bateson, Paul Watzlawick et al a partir de 1952, contribuiu com vários axiomas, entre eles, o fato que é impossível não comunicar. Toda comunicação exerce influência. Neste sentido, todo comportamento de um dos membros do sistema é uma mensagem para os demais, inclusive o silêncio ou um olhar, que são uma comunicação não verbal ou analógica. Nesta ótica, o sintoma é um pedido de socorro, uma tentativa de reequilibrar um sistema ameaçado, a melhor solução encontrada pelo paciente identificado que assumiu a responsabilidade pelas dificuldades da família. “Com a terapia, a perturbação do paciente identificado passa a ser vista não como estigma, mas como sinal e oportunidade de crescimento”[1].A família entra em crise quando insiste em repetir estratégias inadequadas ou obsoletas. Deve-se aprender a linguagem do hemisfério direito (gestalt, imagem,música) e se servir dela como a via real que leva à mudança terapêutica[2].A Teoria da Comunicação também mostrou que a interação pode ser simétrica ou complementar, conforme é baseada na igualdade ou na diferença[3].

A idéia central que permeia a TGS é que o todo é maior que a soma das partes, ou seja, toda e qualquer parte do sistema está relacionada ao seu todo e a todas as partes. Aprofundou-se o conceito de globalidade: qualquer mudança em uma das partes provocará mudanças nas demais e, conseqüentemente, em todo o sistema. Esta percepção expande a nossa forma de pensar e altera também os nossos valores: além de focalizar as relações introduz a noção de ecologia. Assim o projeto expansionista cede o lugar para a busca de desenvolvimento sustentável. A competição abre espaço para a cooperação. A qualidade se torna mais importante que a quantidade. O modelo autoafirmativo (“Penso logo existo”) é substituído por um modelo integrativo.  Temos, de fato, uma parcela de responsabilidade no funcionamento dos sistemas nos quais estamos inseridos. O filme “O Ponto de Mutação” inspirado no livro de Capra explica bem esta nova consciência. Trata-se de uma conversa muito interessante entre uma cientista,um poeta e um pragmático, candidato à presidente dos Estados Unidos. Traz uma reflexão sobre a necessidade de integrar razão, emoção e ação. Pensar sistêmicamente é sair do reino dos conceitos rígidos, dos dogmas, para permitir novas hipóteses, alternativas e aprendizagens.É buscar ver uma mesma situação de vários pontos de vista, tratando de entender a forma como o todo e as partes se relacionam, numa interação reciprocamente reforçadora e mantenedora da situação.

O ser humano não é uma ilha isolada. Como sistema ao mesmo tempo autônomo e interconectado, ele faz parte de vários sistemas com os quais ele interage e que contribuem para o seu desenvolvimento. A família é o principal sistema já que o acompanha desde o seu nascimento. É na família que o ser humano vai se percebendo e construindo a sua autoimagem. A família funciona segundo princípios comuns a todos os sistemas. É um sistema auto regulado comum a hierarquia de poder entre pais e filhos. O princípio da retroalimentação evidencia uma causalidade circular e não linear onde o comportamento de cada pessoa influencia e é influenciado pelo comportamento de cada um dos outros membros do sistema. Os elementos que compõem o sistema têm a capacidade de complementar-se e compensar-se de forma que o sistema não entre em colapso. O sistema precisa ser compreendido no seu contexto de tempo e espaço que permite enxergar o seu ciclo de vida.

A forma de relação entre os elementos forma um padrão de interação que é a repetição de uma mesma seqüência. As regras ou normas do sistema funcionam como um estatuto interno que define o permitido, o exigido, o proibido e o negado. Ele gerencia os sentimentos e as relações de poder dentro do mesmo (quem pode falar, mandar, tomar iniciativa, ter sucesso...). A partir destas regras fixas, os elementos do sistema vão desenvolver estratégias flexíveis para responder às demandas do sistema. É preciso perceber a posição que cada elemento ocupa na estrutura do sistema, as funções desempenhadas,como a de provedor, e os papeis distribuídos ou delegados. Por exemplo,o papel de pai pode ser exercido pelo progenitor ou por um dos filhos. Os papeis geralmente são complementares: o bonzinho e o vilão, o obediente e o rebelde, o tímido e o extrovertido, o acomodado e o superativo.

Assim, o ser humano se comporta de acordo com as características do sistema no qual está inserido. A doença ou disfunção não atinge apenas um indivíduo isolado, mas sua gênese e suas repercussões alcançam todos os membros do sistema. A TGS identifica as relações interpessoais sem rotular o indivíduo. Em vez de buscar culpados, a abordagem sistêmica visa entender como os envolvidos conseguem criar e manter a disfunção. Ela enxerga dificuldades a superar e recursos em vez de se fixar em problemas a resolver e patologias. Ela não julga, mas procura aprender sobre o sistema, descobrir suas regras explícitas e subliminares, seu grau de flexibilidade e rigidez, para criar alternativas que permitam reestabilizar o sistema e devolver a sua mobilidade. Famílias aglutinadas ou dispersas são mais rígidas e dificultam a elaboração de um contrato terapêutico. O conflito é uma dialética a ser vivida, não solucionada.

Desde 1960, vários psicólogos têm contribuído na elaboração de umaTeoria Sistêmica das Famílias bem como de técnicas e estratégias apropriadas.Na visão sistêmica, o terapeuta não é um técnico alheio ao sistema familiar,mas forma com a família um sistema terapêutico que visa promover uma nova perspectiva para propiciar uma reorganização mais funcional e mobilizar os recursos disponíveis para pôr novamente o sistema em movimento. A função do terapeuta é ajudar a família a fazer uma releitura do seu momento atual, perceber os aspectos positivos da crise e a contribuição do sintoma.  É preciso entender e alterar o funcionamento que desencadeou o sintoma. O processo demudança se dá a partir da compreensão da herança trigeracional e dos padrões de comunicação. Ele geralmente requer uma reorganização dos subsistemas num enfoque hierárquico e promove relações interpessoais mais saudáveis.    

Através do genograma, aTerapia Familiar Sistêmica realça a influência da família de origem. Pais percebem que repetem padrões de seus pais que execravam. Casais se flagram reproduzindo modelos relacionais assimilados na infância mesmo tendo se proposto a construir novos modelos no seu casamento. Trazer à luz as experiências primárias promove as reformulações necessárias para liberar o indivíduo da repetição destes padrões familiares disfuncionais. A elaboração das heranças negativas, a revisão de expectativas irrealistas, o desmascaramento de lealdades manipulativas e escravizantes são alguns dos objetivos da terapia. A presença da família de origem permite a restauração dos vínculos através do perdão.

Liberto de seus aprisionamentos passados, o indivíduo deixa de apenas reagir à sua história para encontrar uma nova forma de se relacionar. Quanto mais consciente da influencia familiar mais pode se integrar à família sem perder sua autonomia. Os papéis impostos pela família podem ser transformados,suas regras precisam ser revistas e atualizadas. Ser e pertencer são movimentos complementares essenciais no processo de individuação. O crescimento é um estado equilibrado entre pertencimento e individuação[4].

Desenvolver uma leitura sistêmica requer integrar conhecimentos antropológicos, sociológicos, etnológicos, ecológicos, psicológicos, entre outros. O terapeuta familiar trabalha a partir de sua própria ressonância aos conflitos da família. Para não se misturar com ela, ele precisa permanecer centrado em sua própria experiência de vida. Consciente de suas próprias feridas, ele pode transformá-las numa ponte com o sofrimento da família. Quanto mais integrado, mais ele pode se diferenciar, isto é se identificar com as emoções presentes na família sem se confundir com ela.

Após ter mudado o foco do indivíduo para a família, a Terapia Sistêmica continua ampliando seu alcance incluindo outros sistemas que interagem com a família, como a igreja e a escola, e formam uma rede social que pode ser mobilizada em prol de relações interpessoais mais ricas. A rede social pessoal é a soma de todas as relações significativas para o indivíduo que contribuem para a construção de sua auto-imagem. Redes sociais disfuncionais precisam de uma intervenção terapêutica. Ampliar o foco permite mobilizar novos recursos à medida que expande a capacidade descritiva, explicativa e terapêutica.

Face ao desequilibro entre o desenvolvimento tecnológico e o colapso das relações interpessoais, a TGS aponta a importância de alguns elementos básicos da ecologia: interdependência, reciclagem, parceria, flexibilidade, diversidade e sustentabilidade. Em seu livro ”A Teia da Vida”, Capra declara: ”A sobrevivência da humanidade dependerá de nossa alfabetização ecológica,da nossa capacidade para entender esses princípios da ecologia e viver em conformidade com eles”.

A Terapia Comunitária desenvolvida pelo psiquiatra Adalberto Barreto e fundamentada no paradigma sistêmico é um instrumento eficiente para trabalhar com grupos e mobilizar os recursos individuais e coletivos. Ela fortalece os vínculos promovendo o respeito, a autonomia, a cooperação e a solidariedade.  

 

Isabelle Ludovico da Silva, psicóloga com formação em Terapia Familiar Sistêmica.

isabelle@ludovicosilva.com.br

Fonte:Boletim do Conselho Regional de Psicologia – Nov/Dez 1999.

 

 

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Watzlawick Paul- Le langage du Changement, Paris : Ed. du Seuil,1980.

Na simetria, os parceiros tendem a refletir o comportamento um do outro.Na complementariedade, o comportamento de um parceiro complementa o do outro(Bateson, 1935 in Watzlawick, 1983:69)

Whitaker, Carl- Dançando com a família, Porto Alegre: Artes Médicas,1990.