O mundo precisa de uma pausa para consultar o Manual do Fabricante

Estevan Kirschner
11/11/2020
Devocional

Artigo para a revista Mosaico (15.06.2020)

"Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto." (Rm 8.22).

 

A natureza criada cessou temporariamente de gemerem razão da pandemia provocada pelo coronavírus. Enquanto os seres humanos continuam gemendo com as consequências trágicas do pecado (Rm 8.23; cf. Gn3), a natureza “respira aliviada” das mazelas a que tem sido submetida pela desastrosa intervenção humana.

O isolamento social de grande parte da população em todo mundo produziu efeitos que ultrapassam os resultados esperados na preservação da saúde das pessoas. Grandes metrópoles ostentam excelente qualidade de ar em virtude da cessação da atividade industrial; animais selvagens saem de seu habitat e passeiam livremente por praças e vias expressas totalmente desertas de pessoas e carros; peixes proliferam no litoral de águas límpidas, além de tartarugas e aves que tomam conta de praias; e o verde teima em ressurgir em áreas destinadas à construção nas periferias das cidades. Enfim, parece que a pausa compulsória para a humanidade em tempos de pandemia trouxe grande benefício para a natureza.

É claro que essa constatação sugere uma profunda reflexão na sociedade, e muitos manifestam uma “certeza hesitante” que ecoa por canais digitais: “O mundo não será mais o mesmo depois do coronavírus!” “Certeza hesitante” porque ninguém é capaz de prever o futuro; também porque as incertezas desses nossos dias projetam uma sombra sobre qualquer convicção quanto ao que virá depois.

Do ponto de vista das Escrituras, essa reflexão nos remete a passagens bíblicas tais como Levítico 25, que trata do Ano do Jubileu na Lei de Moisés, o ano para o descanso (pausa) e restauração da terra. Talvez seja interessante observar algumas coisas neste texto que, embora não tenha sido escrito diretamente para nós, traz ensinamentos e princípios úteis para o tempo em que vivemos. Pois, segundo o apóstolo Paulo: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino …” (2Tm 3.16).

1. O Significado do Ano do Jubileu no contexto do povo de Deus no Antigo Testamento

O entendimento adequado do ensino de Levítico 25, que seja aplicável também a nós em pleno século 21, passa necessariamente por compreender qual era o sentido dessa passagem para seus leitores originais. Portanto, precisamos perguntar o que isso tudo significava para Israel.

Deus prescreveu um conjunto de princípios e regulamentos que visavam ao bem de seu povo. Vamos nos ocupar aqui exclusivamente com o que diz respeito ao tratamento da terra, pois o Jubileu incluía também a libertação de escravos (Lv 25.35-55) e o retorno de propriedades às famílias que primeiro as possuíram (Lv 25.23-34).

Assim, além do Ano Sabático — celebrado de 7 em 7 anos— para o descanso da terra, com a cessação de plantio e colheita por 1 ano(Lv 25.2-5), havia também o Ano do Jubileu — celebrado a cada 50 anos — em que, da mesma forma, havia uma pausa para o descanso da terra/solo por um ano adicional (Lv 25.8-9, 11). Ou seja, o ano 49 (múltiplo de 7), também um Ano Sabático, era seguido de mais um ano para o descanso da terra, o Ano do Jubileu.

Apesar de o princípio do descanso sabático e a pausa para o solo no Ano do Jubileu serem claramente decretados por Deus na antiga aliança, o testemunho do restante do AT é de que houve negligência e pouca atenção a isso por parte de Israel e Judá. O profeta Jeremias advertiu sobre 70 anos de desterro de Judá na Babilônia (Jr 25.11; 29.10) como consequência do desrespeito da Lei. O autor dos livros de Crônicas explica, ao final do período de exílio, a razão desses 70 anos (cf. 2 Crônicas 36.21): “A terra desfrutou os seus descansos sabáticos; descansou durante todo o tempo de sua desolação, até que os setenta anos se completaram, em cumprimento da palavra do SENHOR anunciada por Jeremias.” Ou seja, na história de Israel no AT houve negligência quase absoluta no cumprimento das determinações da Lei em relação ao Ano Sabático e ao Jubileu.

2. Lições do Ano do Jubileu para o povo de Deus nos dias de hoje

O Ano do Jubileu foi designado para o bem do povo na terra prometida e não como um peso legal ou empecilho ao desenvolvimento e bem-estar da nação. Ao pensar sobre isso, lembro de minha adolescência quando, para justificar a destruição de florestas e a desfiguração da paisagem em favor de projetos industriais, rodoviários (a Transamazônica) e urbanos se repetia com insistência doutrinadora e ao mesmo tempo perturbadora: “É o preço do progresso.” Meus anos de vida têm deixado claro que esse raciocínio destrutivo e negligente com o meio ambiente é nada menos que uma carta branca para a autodestruição, não só dos recursos do planeta como também da própria humanidade.

A situação do cristianismo hoje é bem diferente da situação do povo de Deus no AT. A igreja de Jesus Cristo não tem uma terra com fronteiras estabelecidas, não somos todos procedentes de uma mesma cultura e tradição como Israel. No entanto, os princípios por trás da Lei do Ano do Jubileu, continuam valendo como orientação para a vida e experiência do cristão no mundo.

2.1 Uma vida de fé que abrange toda a existência do cristão no mundo

Essa pausa de 2 anos inteiros, nos quais não se plantava nem se colhia, impunha a necessidade de uma fé/confiança firmemente ancorada nas promessas de Deus como provedor das necessidades básicas da vida — e isso valia tanto para o Ano Sabático como para o Ano do Jubileu (Lv 25.18-22). Viver pela fé é um desafio que começa com o nosso sim para a oferta do perdão em Jesus Cristo, mas que prossegue por toda a extensão de nossa vida. É relativamente fácil viver pela fé quando as coisas vão bem. Isso se torna complicado no meio de oposição, perseguição ou pandemia. Precisamos afirmar com Habacuque diante da escassez “… ainda assim eu exultarei no Senhor e me alegrarei no Deus daminha salvação” (Hc 3.18). Recursos espremidos e a impossibilidade de manter o trabalho/emprego normal, tudo isso nos remete à essência do Ano do Jubileu: confiança inabalável naquele que pode nos sustentar no meio da crise.

2.2 Um estilo de vida simples por toda a existência do cristão no mundo

O descanso da terra no Jubileu implicava numa “opção compulsória” por um estilo de vida simples. Como era necessário confiar no Deus supridor das necessidades básicas no período em que não se plantava nem se colhia uma safra normal, as exigências da vida se tornavam muito menores do que nos períodos de fartura. O israelita não podia esperar lucro, pois não havia garantia de produção para além do suprimento das necessidades. Será que em nossa sociedade consumista há espaço para uma vida de simplicidade? Será possível viver com menos e por mais tempo com as mesmas coisas diante da pressão por comprar aparelhos de última geração ou trocar o carro a cada 2 anos? São escolhas não tão difíceis de se fazer em tempos de crise; será que levaremos da crise a herança bendita de uma vida simples? Paulo, na prisão e isolado socialmente diz: “aprendi a adaptar-me a toda e qualquer circunstância” (Fp4.11).

É bem provável que a sociedade em que vivemos esquecerá muito rapidamente das privações momentâneas pelas quais tem passado agora. Esquecerá também que o descanso não planejado da terra produziu fenômenos deslumbrantes que apontam para a boa criação de Deus e à boa mordomia dos recursos que ele nos oferece nela. Digo isso porque, como Hegel afirmou: “A única coisa que se aprende com a história é que nada se aprende com a história. ”Que nós, que conhecemos o “Manual do Fabricante”, aprendamos lições básicas que outros talvez nem sonhem em aplicar e vivamos a confiança na provisão segura de nossas necessidades em Cristo (Mt 6.33).