Fazer-teologia-junto

Paulo Won
3/9/2018
Hermenêutica

Fazer-teologia-junto

Em suas “Conversas à mesa”, ao analisar o trabalho monumental de Jerônimo em traduzir a Bíblia para o latim, Martinho Lutero disse: “intérpretes e tradutores não deveriam trabalhar sozinhos; pois a boa et propria verba (e apropriada palavra) nem sempre ocorre e uma única mente”[1].Talvez essa máxima nunca foi tão necessária de ser reafirmada como nos dias de hoje.

              Não me esqueço dos encontros nas manhãs de sábado que tínhamos numa sala oculta lá dentro do Seminário Servo de Cristo. O dr. Estevan Kirschner reunia um grupo de alunos, dentre os quais eu, para ler e traduzir extensas porções do texto grego do Novo Testamento. Como era gratificante ouvir a tradução que cada um tinha feito previamente em casa. E quão bom era ser confrontado sobre a minha “melhor tradução”, ou “opção mais apropriada ao texto”! Como era bom aprender junto a palavra de Deus! Sem duvida nenhuma, essas reuniões informais que duraram mais de um ano, foram essenciais para que eu chegasse à conclusão, um tanto quanto óbvia, que, especialmente no campo teológico,sozinho não se vai muito longe.

              É quase que tautológico afirmar que a sociedade em que vivemos é individualista. Nosso estudo da Bíblia, fora e dentro das salas de aula (ou, se você preferir, da igreja), tem, também, se amoldado cada vez mais a esse zeitgeist. Isso é potencializado por todo o avanço tecnológico que nos permite, com um clique, acessar os conteúdos dos melhores centros de ensino, escutar palestras dos mais renomados estudiosos e até ser “formado” academicamente sem ter a necessidade de ter contato físico com outro indivíduo. Não sou contra, por exemplo, o conceito de ensino à distância per se — ainda mais em um país cuja contingência educacional é de proporções catastróficas. Não podemos, contudo,deslocar para um plano menos relevante a prática bimilenar (ou mais, se considerarmos o contexto judaico) de aprendermos a palavra de Deus em um contexto comunitário (o fazer-teologia-junto).

              No cômputo geral, a vida cristã é comunitário. O crente é parte da comunidade da fé, ou se preferir, da igreja.Na medida em que Deus não age apenas na dimensão individual, mas sobretudo, na(e por meio da) comunidade, há um limite para que o aprendizado da Palavra de Deus a nível solitário seja “edificante”. Quando nos trancamos em nosso mundo,cerramos a porta dos nossos gabinetes e nos abstemos do contato físico com os nossos irmãos e irmãs — para junto com eles aprender  —, qualquer conclusão que nasce desse contexto eremita pode virar uma “verdade” que exclui qualquer outra possibilidade de interpretação, análise ou debate. 

              Ao ver “bate-bocas” acalorados nas redes sociais envolvendo temas teológicos, penso que estamos “discutindo”de uma forma inapropriada. Podemos até ter a ilusão de que veiculamos boas ideias a milhares. Talvez milhões de pessoas. Mas mídia social nunca estará à altura daquilo que o Novo Testamos diz ser comunidade ou igreja. Nas redes, uma miríade de doutos conhecedores da “verdade” vomitam suas opiniões apenas com o objetivo de serem “curtidos” e “compartilhados” — até que ponto isso é fazer teologia-junto? Temos à disposição “donos da verdade” e detentores do direito sacrossanto de julgar a opinião de outrem. Mas será que eles se sentariam ao redor de uma mesa,tomariam café e, de forma franca, discutiriam suas diferenças em comunhão,diante de Deus? Muita verborragia e pouca piedade: Eis o sintoma do nosso fazer teologia ex comunio.[2]

              Aliás, engana-se quem pensa que se pode “estudar” a palavra de Deus “sozinho”. A nossa Bíblia, para ilustrar, é fruto da tradução de muitas pessoas; nossa maneira de pensar os temas bíblicos também é fruto da tradição, seja ela qual for, que nos liga a milhares e milhares de pessoas ao longo dos dois mil anos de história da igreja.Somos, nas palavras de João de Salisbury, apenas nanos gigantum humeris insidentes (anões sobre ombros de gigantes). Exclui-se, por isso, a possibilidade de um pensar teológico na base do “só eu e a Bíblia”, “só eu e o Espírito Santo”, ou, “só eu e meu computador”.

              Tenho aprendido, ao longo dessaminha curtíssima jornada, que juntos, em comunidade, aprendemos melhor. Fazer-teologia-sozinho aguça, entre outras coisas, nossa vaidade, principalmente quando achamos que chegamos a conclusões pretensamente “revolucionárias”.O fazer-teologia-junto,em contrapartida, demanda humildade: dominar a complexa arte de ouvir, falar,discordar, concordar, abrir-mão de uma posição (ou não) e tentar chegar em um denominador comum, quando possível.

              Quais são, então, os benefícios de se fazer-teologia-junto? Primeiramente, vencemos as barreiras de uma visão limitada (individualizada) da realidade (seja ela bíblica ou não). Em segundo lugar, exercitamos a imprescindível virtude da humildade, quando nos propomos a, junto da comunidade, respeitar e estar aberto à ideia e opinião do outro. Em terceiro lugar, mas não menos importante, nos alinhamos à tradição universal cristã em produzir teologia a partir da e para a igreja. Uma teologia sadia geralmente não é produzida dentro de gabinetes fechados ao mundo.

              O que Jesus diria sobre o nosso fazer-teologia? O Senhor, que não tinha nenhuma reserva em assentar-se com “pecadores”, não nos convidaria a fazer o mesmo? O que dizer do apóstolo Paulo, cujas cartas nasceram em resposta às crises vivenciadas pelas igrejas espalhadas no mundo mediterrâneo? Será que nossa teologia está ligada ao“amemos uns aos outros” de João, expressão verdadeira do conhecer-a-Deus(1Jo 4:7)?

              Infelizmente, as contingências da vida moderna estão aí. Temos pouco tempo para estamos juntos. As distâncias que nos separaram são grandes. Temos problemas logísticos como o trânsito das grandes metrópoles como São Paulo. Também, a violência desenfreada em nosso país inviabiliza, em muitos momentos, o estar-junto.Não podemos, porém,  perder de vista a verdade que o Evangelho é aprendido, vivido e experimentado em comunidade, como igreja. Em outras palavras, devemos aspirar ser teólogos da (e para a) igreja e não teólogos de gabinete.

              Voltando à máxima do reformador alemão, temos poucas mentes brilhantes como Jerônimo. Trazendo uma imagem futebolística, poucos são os craques que podem decidir a partida em um genial lance de habilidade individual. O padrão é que nós (meros mortais!) dependamos uns dos outros para, diante de Deus, pensarmos sobre Ele, experimentarmos Sua graça, e completarmos, juntos,a jornada que nos é proposta. Façamos teologia juntos! Esse esforço, creio eu,vale a pena!

1 -Martinho Lutero, Conversasà mesa de Lutero (Brasília: Monergismo, 2017), 14.‍

2 - Nosentido de “fora da comunidade”, i.e., de forma isolada.