FAMÍLIA: FONTE DE ALEGRIA E SOFRIMENTO

Isabelle Ludovico
3/3/2022
Pais e Filhos

O nosso primeiro universo é o útero materno. Nossa vida depende inteiramente de outra pessoa que proporciona a nossa formação física e nos comunica se somos bem-vindos ou indesejados. Com a maturação biológica, somos expulsos deste lugar que ficou apertado. Vamos paulatinamente conquistando novos espaços de autonomia: primeiro com a respiração, depois com a capacidade de caminhar num movimento que oscila entre o equilibro e o desequilibro. Se, para andar com as próprias pernas, precisamos de chão firme debaixo dos pés, o chão que promove o nosso amadurecimento é feito de afeto e encorajamento.


A dependência física se acompanha de uma dependência emocional. A família é o útero social aonde o indivíduo vai se percebendo e desenvolvendo suas aptidões através dos vínculos que constrói. É um sistema regido por regras que determinam os padrões de interação. Ela é submetida a duas forças contrárias: homeostase e transformação. Uma garante a sua conservação enquanto a outra permite o seu crescimento. Da mesma forma, o ser humano precisa se sentir pertencendo, integrado para poder desenvolver sua autonomia. Assim, a família deve gerar segurança e liberdade, para promover a unidade no respeito das diferenças. O grau de integração e diferenciação depende da flexibilidade do sistema. Quanto mais nos sentimos amados e valorizados mais somos estimulados a ampliar o nosso mundo e desenvolver o nosso potencial.

Sentir-se acolhido, reconhecido, desejado permite construir uma autoestima positiva baseada na convicção de estar no lugar certo, de ter o direito de existir e crescer. A tarefa da família é receber um ser dependente, imaturo, frágil e transformá-lo num ser autônomo e interdependente, capaz de amar e ser amado, bem como participar ativamente na construção do mundo. Ser amado significa ser respeitado na sua unicidade, nas suas escolhas e desejos, mesmo que estes sejam diferentes dos progenitores. Os pais precisam dar aos filhos a permissão de viver de forma coerente com os dons e talentos que Deus lhes deu mesmo que não coincidem com as expectativas pessoais deles.

Quando a estrutura familiar é muito rígida, a criança não encontra espaço, afeto, liberdade. Ela se sente coagida a ocupar um lugar predeterminado e restritivo para não ser rejeitada. Segundo o psiquiatra Adalberto Barreto: “O ambiente familiar passa a ser um espaço de asfixia, de muita frustração e sofrimento.” Nessas famílias não há lugar para o desabrochar da vida. Cada membro não é visto como um ser único com desejos e projetos próprios. Os anseios pessoais são asfixiados pela pressão para se conformar ao molde familiar, obedecendo às regras rígidas que não estão a serviço do indivíduo e sim a serviço de um equilibro estático e restritivo. As relações são fundamentadas na manipulação e na culpa. O ser humano precisa se violentar para continuar fazendo parte do sistema. Não há espaço para o prazer, a alegria, a criatividade. Um clima de fiscalização e desconfiança contamina as relações. 

O contrário do amor não é o ódio e sim a indiferença.  Muitos se submetem por medo da rejeição. Outros tomam para si a responsabilidade de manter a família coesa mesmo que seja através da doença. Eles se tornam a lata de lixo da família, o pára-raios das tempestades afetivas. A droga e o álcool podem se tornar uma forma de escapar magicamente desta realidade familiar opressiva. A violência intrafamiliar é outro sintoma deste desajuste. O útero social, em vez de promover emancipação e desenvolvimento, tem se tornado um espaço de condicionamento, deformações e até exclusão. Esta fonte de vínculos afetivos significativos pode se tornar fonte de desamparo e desespero. A causa não é apenas interna. Ela pode ser encontrada também na violência social que pesa sobre a família através do desemprego, falta de habitação, saúde, educação, segurança que “produz estresse, reduz o limiar da tolerância e favorece as agressões, as fugas nas drogas e no álcool e as desagregações.” (Adalberto Barreto). 

Os conflitos e desentendimentos provenientes da diversidade de sonhos e aptidões precisam ser tratados na ótica do perdão e da reconciliação. A família tem o chamado de refletir o amor incondicional de Deus. Os vínculos não podem sofrer ameaças de rompimento. Pelo contrário, eles são compromissos renovados a cada crise que permitem encarar os problemas na busca de soluções que levem em consideração as necessidades de todos os envolvidos. A harmonia familiar não pode ser construída a partir de uniformidade e cerceamento. Ela é fruto do diálogo, da capacidade de negociação, da flexibilidade, do respeito mútuo. Ninho e horizonte amplo garantem aconchego e liberdade. Quando perguntaram à mãe de Martin Luther King qual era o segredo da sua educação por ter gerado um filho tão especial, ela respondeu com sabedoria e simplicidade: “Procurei dar-lhe raízes e asas”. As famílias saudáveis são aquelas que conseguem construir vínculos suficientemente fortes para proporcionar autonomia e crescimento, em vez de produzir pessoas inseguras e dependentes.


Isabelle Ludovico da Silva, psicóloga com especialização em Terapia Familiar Sistêmica.