ENTRE O BEM E O MAL: Os limites entre a religiosidade cega e a espiritualidade verdadeira

Tiago Abdalla T. Neto
16/9/2020
Devocional

INTRODUÇÃO

A maioria de nós nunca se esquecerá do ocorrido no dia 11 de Setembro de 2001. Um avião pilotado por um terrorista muçulmano vai na direção de uma das torres gêmeas, em Nova York, e se choca com ela. Um desastre! Centenas de pessoas mortas em um incidente jamais esperado antes. Familiares e amigos choram profundamente seus mortos e a nação americana entra em choque.

Se fossem indagados sobre a razão do atentado, certamente, os homens que estavam no avião argumentariam que fizeram isso em nome de Deus. “Os americanos cristãos são infiéis que devem ser atacados numa guerra santa e é isto o que fizemos ao destruirmos milhares de vida” - diriam.

A intolerância religiosa sempre existiu na história. Outro exemplo disso foi a morte na fogueira, sentenciada pela Igreja Católica do pregador da Boêmia, John Huss. Ao defender a autoridade das Escrituras acima do papa, ele acabou por se tornar vítima de religiosos que não admitiam, de forma alguma, a existência de um pensamento diferente do seu.

Esses acontecimentos nos alertam para o perigo de fazer nossa religiosidade um fim em si. Talvez, nunca cheguemos a matar uma pessoa, na preocupação de manter nosso status religioso, mas, provavelmente, já prejudicamos e ferimos várias delas. Um texto das Escrituras nos protege contra para o perigo da religiosidade cega. Aquela religiosidade cujo deus é o próprio homem e seu anelo insaciável de reconhecimento e poder.

Quero me dirigir com você para o texto de Marcos 3. Ali, nos primeiros seis versículos, encontraremos três cenas que mostram a religião fria dos fariseus e o antídoto para ela, na espiritualidade verdadeira demonstrada por Jesus. Se quisermos fugir do legalismo ou do orgulho religioso, precisamos seguir as pisadas do Mestre e aprender sobre a espiritualidade que é segundo o coração de Deus. Convido-o (a) a ler Marcos 3.1-6 e refletir sobre esta passagem:

3. 1 Noutra ocasião ele entrou na sinagoga, e estava ali um homem com uma das mãos atrofiada. 2 Alguns deles estavam procurando um motivo para acusar Jesus; por isso o observavam atentamente, para ver se ele iria curá-lo no sábado. 3 Jesus disse ao homem da mão atrofiada: “Levante-se e venha para o meio”.

4 Depois Jesus lhes perguntou: “O que é permitido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar a vida ou matar?” Mas eles permaneceram em silêncio.

5 Irado, olhou para os que estavam à sua volta e, profundamente entristecido por causa do coração endurecido deles, disse ao homem: “Estenda a mão”. Ele a estendeu, e ela foi restaurada. 6 Então os fariseus saíram e começaram a conspirar com os herodianos contra Jesus, sobre como poderiam matá-lo. (NVI)

A AMEAÇA DA RELIGIOSIDADE CEGA – vv. 1-2

No texto anterior, Marcos tratou sobre o confronto de Jesus com o legalismo dos fariseus, quando seus discípulos colhiam espigas e comiam no dia de Sábado (Mc 2.23-28). A parte final resumiu o ensino de Jesus de que o sábado fora estabelecido para o bem do homem, para serví-lo e não o contrário (2.27).Além do mais, Ele próprio é o Senhor do sábado, aquele que determina o seu propósito e como deve ser vivido pelos homens (2.28).

Em Marcos 3.1-6, o sábado continua sendo a moldura do quadro, ainda que a situação pintada seja diferente. Como era comum nesse dia, havia o culto na sinagoga e Jesus estava presente. Mas além dele, havia outra pessoa especial,um homem cuja mão era ressequida, atrofiada.

Não bastavam eles, o texto traz consigo outras personagens. Não fala quem são, mas diz que estavam observando cuidadosamente a Jesus, para ver se curaria o doente no dia de sábado. A NVI descreve bem a atitude deles como “o observavam atentamente”. O verbo grego indica uma ação cuidadosa, de olhar com muita atenção na busca por encontrar uma falha ou um erro. Recordo-me de uma situação que ilustra essa atitude. Quando criança, minha mãe havia chamado a minha atenção por algo que eu fiz de errado. E, como é natural de uma criança rebelde quando repreendida, esperei ela sair e comecei a murmurar e reclamar comigo mesmo. Só que não havia percebido que ela estava atrás da porta,observando qual seria a minha reação. Foi só eu começar a murmurar com raiva,que ela saiu detrás da porta para me corrigir. É esse tipo de atenção cuidadosa como a da minha mãe que marcou a postura daqueles que se fixaram em Jesus.

Graças a Lucas, sabemos que tal grupo era formado por fariseus e escribas (Lc 6.7). Esses religiosos e líderes religiosos tinham uma finalidade astuta ao prestarem a atenção em Jesus. Queriam acusá-lo! Não, simplesmente,sair difamando, mas, como deixa claro as ocorrências desta palavra em outros textos, tinham como propósito uma acusação formal diante de uma autoridade civil (cf. Mt 27.12; Mc 15.3; Lc 11.54; 23.2,10, 14; Jo 5.45; At 22.30). Pois,em sua tradição, um médico não deveria curar nenhum doente em dia de sábado. Apenas quando o doente corresse real risco de vida, poderia, então, fazer isso. Curá-lo, indicaria trabalho e trabalho no sábado requer a pena de morte (Êx31.14-17).

A questão é que o Antigo Testamento proibiu o trabalho no sábado que implicasse em produtividade. Deus queria que o homem não se transformasse numa máquina de produção ou de ganhar dinheiro, mas sim, num adorador. E, parte disso, incluía dedicar um dia da semana para lembrar do desejo de Deus de que O adoremos, afastando o perigo da rotina controladora.

Esses homens, no lugar de usar o sábado como um dia de adoração a Deus,estavam fazendo dele um dia de adoração a si mesmos, preparando uma armadilha para, no final das contas, matarem Jesus. O sábado acabou se tornando um dia do cultivo do próprio ódio que havia dentro deles, no lugar de cultivarem o amor para com Deus e com o próximo. Em nome de Deus, queriam matar o próprio Deus-homem porque confrontava a sua religiosidade legalista.

Alguns maus usos de nossa religiosidade podem ser:

·        Uma forma orgulhosa de defendermos a verdade, de modo que deprecie, desrespeite e humilhe o nosso próximo, sem mostrar a esperança da graça transformadora em Cristo.

·        A atitude de alguém que procura esconder e a cobertar suas falhas, sempre se passando como uma pessoa muito espiritual, em quem é impossível encontrar erros. A tendência dessa pessoa é não se humilhar nem buscar a ajuda de algum irmão que possa lhe aconselhar e orar juntos pela sua dificuldade.

·        Uma atitude de “caça as bruxas” dentro da igreja. Buscando sempre ver falhas e defeitos nos outros, comentando isso com pessoas. Afinal, isso o (a) faz sentir bem, ao perceber que não é tão mal (má) quanto os outros.

·        O outro lado da moeda é procurar expor meus “feitos espirituais”, isto é, a grandeza de meu ministério na igreja, a minha intimidade profunda com Deus, meu vasto conhecimento bíblico, etc., buscando o louvor e respeito das pessoas.

A CONSTÂNCIA NA BUSCA DO BEM – vv. 3-4

O que os religiosos se esqueceram é que este homem é o mesmo que desvendou seus corações quando pensavam consigo mesmos, indignados, sobre o fato dEle declarar perdão de pecados ao paralítico em 2.1-12. E, assim sendo,chama o homem da mão ressequida para o meio, isto é, para um lugar central, onde ficasse diante dEle e dos fariseus, para mais uma vez revelar seus pensamentos.

Jesus coloca lado a lado as suas intenções com as dos fariseus. A pergunta sobre “O que é permitido?”, já havia aparecido em 2.24 na boca dos fariseus. Agora é Jesus quem fala sobre o certo e o errado, e lança isso a eles. “O que é permitido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar a vida ou matar?”. Jesus buscava fazer o bem ou, como é freqüentemente usado o verbo“salvar” na Bíblia, Jesus queria “curar” o doente. Ao passo que a intenção dos religiosos era, desde o início, matar Jesus mediante suas acusações e, portanto, fazer o mal. Jesus ataca a religiosidade que se contenta em cumprir regras, sem enxergar a perspectiva maior da glória de Deus e do bem ao próximo. Deus várias vezes havia criticado seu povo por essa pretensa religiosidade,como é o caso de Isaías 58.2-8:

Pois dia a dia me procuram; parecem desejosos de conhecer os meus caminhos, como se fossem uma nação que faz o que é direito e que não abandonou os mandamentos do seu Deus. Pedem-me decisões justas e parecem desejosos de que Deus se aproxime deles.

‘Por que jejuamos’, dizem, ‘e não o viste? Por que nos humilhamos, e não reparaste?’

Contudo, no dia do seu jejum vocês fazem o que é do agrado de vocês, e exploram os seus empregados. Seu jejum termina em discussão e rixa,e em brigas de socos brutais.

Vocês não podem jejuar como fazem hoje e esperar que a sua voz seja ouvida no alto. Será esse o jejum que escolhi, que apenas um dia o homem se humilhe, incline a cabeça como o junco e se deite sobre pano de saco e cinzas? É isso que vocês chamam jejum, um dia aceitável ao SENHOR?

“O jejum que desejo não é este: soltar as correntes da injustiça, desatar as cordas do jugo, pôr em liberdade os oprimidos e romper todo jugo? Não é partilhar sua comida com o faminto, abrigar o pobre desamparado, vestir o nu que você encontrou, e não recusar ajuda ao próximo?

Aí sim, a sua luz irromperá como a alvorada, e prontamente surgirá a sua cura; a sua retidão irá adiante de você, e a glória do SENHOR estará na sua retaguarda. (NVI)

Creio que Jesus faz o mesmo com os fariseus e mestres da lei. Confronta seu legalismo com o verdadeiro espírito da lei. A questão de dias é secundária,quando está em jogo o bem ou o mal. Sempre deve se praticar o bem, assim como sempre se deve evitar o mal. “Quem sabe que deve fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4.17).

Um modo bem claro como praticamos o mal no lugar do bem é quando nos preocupamos muito mais com a estrutura, os projetos e programas de nossa igreja, em lugar de nos concentrarmos na intimidade com Deus e no bem do outro. Quando pensamos mais na estrutura, ignoramos o uso de nossos recursos financeiros para ajudar irmãos e pessoas que precisam ou para levar a mensagem do evangelho àqueles que ainda não conhecem a Cristo.

Quando damos ênfase demasiada aos nossos projetos e programas, pessoas podem se tornar um obstáculo, no lugar de serem o alvo. Já vi líderes e membros de igreja pisarem em outros devido a um programa dar errado ou não acontecer do jeito que gostariam. Já vi pessoas causarem intriga e tumulto na igreja porque um determinado irmão não quis participar de seu projeto.

Também, já vi líder de igreja que está tão preocupado, mas tão preocupado em fazer a sua igreja crescer, explodir numericamente, que nela se encontra um número grande de famílias destroçadas, “como ovelhas que não têm pastor”.

Além disso, nosso serviço nunca poderá ser um substituto para a nossa intimidade com Deus. Há um ativismo muito grande em nossas igrejas, sem uma profundidade real em sua espiritualidade.

Queridos, nunca nos esqueçamos do que o Senhor requer de nós, daquilo que é bom, “que pratiques a justiça e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus” (Mq 6.8).

A AÇÃO DIRIGIDA POR DEUS – vv. 5-6

O Senhor Jesus não se deixou levar pela pressão dos religiosos. Ele,literalmente, se ira, mas, também, se entristece. A ira de Jesus é justa, assim como Deus manifesta a cada dia o seu furor contra aqueles que decidem permanecer em rebeldia a Ele (Sl 7.11). A tristeza que sente é porque mais miserável que a condição do homem de mão atrofiada, é o coração endurecido dos fariseus. Endurecimento esse que Paulo falará mais para a frente em Romanos 11.25 e que resulta em alienação de Deus e cegueira espiritual (Ef 4.18). Esses homens se tornaram insensíveis, insensíveis para compreender a vontade de Deus e insensíveis para amar o próximo.

Movido pela vontade de Deus, não pelo temor dos homens, Jesus cura aquele doente, sem precisar tocá-lo, simplesmente, falando. A mesma palavra criadora de Gênesis 1: “Haja luz” e houve luz, é restauradora aqui: “Estenda a mão”, ele a estendeu e ela foi restaurada.

Eles não conseguiram o que queriam! Jesus nada fez, apenas falou! Por isso, como deixa claro o texto paralelo em Lucas, “eles ficaram furiosos” (Lc 6.11). E começaram a tramar com os herodianos, um grupo político de ideais completamente diferentes, como matariam Jesus. Sua intenção ficou clara aqui,usavam o sábado para fazer o mal.

Nosso Senhor deixou seu exemplo da verdadeira espiritualidade. Ela se expressa num coração sensível para compreender a vontade de Deus nas Escrituras e em amor na direção do próximo. “Nós amamos porque Ele nos amou primeiro. Se alguém afirmar: ‘Eu amo a Deus’, mas odiar seu irmão, é mentiroso, pois quem não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 João 4.19-20).

A nossa sensibilidade em ouvir a voz de Deus nas Escrituras e em praticá-las é proporcionalmente inversa ao temor que temos das pessoas. O temor dos homens marcava o caráter dos fariseus, preocupados com seu status e reputação. Preocupados em não permitir que nada e ninguém, nem Jesus,ameaçassem seu retrato de piedade.

Ao passo que o nosso Senhor agiu motivado por Deus. Sabia o que Seu Pai queria e cumpriu o seu propósito, ao salvar aquele homem da mão atrofiada. Não se preocupou com sua imagem perante os poderosos e influentes religiosos de sua época. Apenas fez o que devia.

O que determinará se seremos religiosos cegos, famintos pela própria glória, ou se cultivaremos uma espiritualidade genuína que agrada a Deus, será nossa disposição em ouvir a voz de Deus ou a dos homens. Seremos sensíveis ao que Deus pede de nossas vidas e obedeceremos? Ou viveremos uma religiosidade fria, preocupada com as aparências e a manutenção do nosso muro religioso? A quem amaremos mais: a Deus e ao próximo, ou a nós mesmos? A resposta para essas perguntas será essencial na direção de nossa espiritualidade.